MdM França

Mohammed Shaheen, com 35 anos, é médico de saúde mental, a trabalhar para a Médicos do Mundo em Gaza. Nos últimos sete meses, vive uma ansiedade diária: será que os filhos ainda vão estar vivos amanhã? Onde vai acontecer o próximo ataque? Atualmente está refugiado na Middle Area - região entre a cidade de Gaza e Rafah -, onde continua a missão de ajudar a população e testemunhar o horror que esta vive todos os dias. 

TEVE DE FUGIR DE RAFAH NO SEGUIMENTO DAS OPERAÇÕES MILITARES DE ISRAEL, NO INÍCIO DE MAIO?

Na realidade, não. Mas, antes disso, tive de me deslocar duas vezes. Quando houve a evacuação de Khan Younis, há quatro ou cinco meses, tive de abandonar a zona onde vivia para ir para Rafah. Depois, em fevereiro, quando começaram os ataques aéreos no leste de Rafah, fui para a Middle Area, em Deir el-Balah, onde vivo atualmente. Estou aqui com a minha mulher, os meus três filhos, a minha mãe, e dois irmãos e uma irmã mais novos.

 

HÁ QUANTO TEMPO TRABALHA PARA A MÉDICOS DO MUNDO?

Trabalho para a Médicos do Mundo desde 2022, ou seja, há quase dois anos. Sou médico de medicina geral com um mestrado em saúde mental. Estudei a integração da saúde mental nos serviços de cuidados gerais, razão pela qual comecei a trabalhar com a Médicos do Mundo enquanto médico de saúde mental. Isto foi na cidade de Gaza, no nosso escritório que foi destruído. Prestávamos serviços psicossociais e apoio a instituições em toda a Faixa de Gaza.

 

“NÃO PODEMOS TRATAR AS DORES DE CABEÇA OU AS DORES DE CORPO SEM TER EM CONTA A SAÚDE MENTAL.”

 

ATUALMENTE QUE SERVIÇOS MÉDICOS SÃO PRESTADOS PELA MÉDICOS DO MUNDO EM GAZA?

Desde o início desta guerra, tudo foi destruído. Já não existe um sistema de saúde em Gaza, não há serviços médicos suficientes, nem medicamentos, nem sequer um local onde se possa ir aceder a consultas e medicamentos, e não há serviços de emergência para ajudar as pessoas. A Médicos do Mundo começou a instalar pontos médicos em Rafah no final de janeiro. Inicialmente, prestámos sobretudo cuidados de saúde primários de emergência. Depois, acrescentámos serviços de saúde sexual e reprodutiva, serviços de saúde materno-infantil e apoio psicossocial, ou seja, consultas psicológicas em sessões individuais ou de grupo, em cada posto médico. Desta forma, podemos encarregar-nos dos doentes que necessitam de cuidados de saúde mental ou encaminhá-los para outros locais em Gaza. Para o efeito, estamos articulados com outras organizações e com as clínicas do Ministério da Saúde. Mas, desde maio, toda a gente tem fugido de Rafah, pelo que criámos um novo posto médico na Middle Area, onde prestamos os mesmos serviços de saúde. Com a evacuação de Rafah, tivemos de nos adaptar para intervir onde há mais pessoas e mais necessidades, para responder da melhor forma possível.

 

COMO É QUE CONSEGUEM ENCONTRAR MATERIAL MÉDICO?

A situação de segurança em Gaza é dramática. Se as pessoas estão a sofrer, nós, enquanto organização internacional que oferece serviços de saúde e apoio psicológico, também estamos a sofrer com a insegurança. Temos donativos da Organização Mundial da Saúde, por exemplo, e a Médicos do Mundo também tem conseguido enviar medicamentos para Gaza. Mas o stock foi roubado do nosso escritório em Rafah. Estamos a tentar gerir a escassez e a reabastecer o nosso stock junto com outras organizações internacionais. Por agora, estamos a conseguir satisfazer as necessidades das pessoas que nos procuram.

 

QUAIS SÃO AS NECESSIDADES DESTAS PESSOAS E O QUE SE PODE FAZER POR ELAS?

Os meus colegas do serviço de saúde mental são psicólogos e agentes de saúde mental que trabalham diretamente com os beneficiários, organizando sessões de apoio e aconselhamento, intervenções psicossociais, que vão desde a psicoeducação a intervenções avançadas com pessoas que sofrem de stress, depressão ou psicose devido às condições em que vivem atualmente. Como médico de saúde mental, acompanho a integração dos serviços de saúde mental com médicos, enfermeiros e psicólogos. Ajudo-os a identificar as necessidades de saúde mental durante os exames médicos, a encaminhar os doentes mais críticos - aqueles que precisam de acompanhamento regular ou de medicação que não temos em stock - para as estruturas adequadas. Estamos também a produzir materiais de formação para o pessoal médico que vai responder a esta crise, não só da Médicos do Mundo, mas também de outros intervenientes em Gaza, para os ensinar a compreender as necessidades de saúde mental e de apoio psicossocial. Não podemos tratar as dores de cabeça ou as dores de corpo sem ter em conta a saúde mental. Temos de nos responsabilizar por ela.

 

QUAIS SÃO OS CASOS MAIS COMUNS COM QUE SE DEPARA?

Há muitas perturbações ligadas ao stress e ao luto. São reações normais que se tornam anormais em determinadas situações. Como em Gaza, onde a violência se prolonga há demasiado tempo. Não se trata apenas da dor de perder entes queridos. É a dor de perder os filhos, a casa e o emprego. Toda a gente em Gaza está hoje a sofrer de um luto anormal.

Os sintomas de stress estão a atingir níveis extremos. Estamos a começar a diagnosticar perturbações de stress multi-traumático. Todos os dias nos deparamos com casos de stress grave, doentes que sofrem de agitação psicomotora, doentes com perturbações mentais crónicas, doentes psicóticos e epiléticos, que necessitam de tratamentos que não estão disponíveis devido à escassez. Por vezes, somos obrigados a mudar o tratamento destas pessoas, a começar do zero com uma nova molécula, apesar de terem sido tratadas eficazmente durante anos e de a sua doença estar sob controlo. De repente, entram em colapso e temos de encontrar outro medicamento, seguir esse tratamento e controlar os efeitos secundários.

E, acima de tudo, há a depressão. Está em todo o lado em Gaza, neste momento. Mais de um em cada cinco dos doentes que vemos tem uma perturbação mental. Temos de identificar estes doentes e fazer o nosso melhor por eles. Graças aos nossos psicólogos, podemos oferecer consultas de psicologia, sessões de apoio ou iniciar um curto curso de terapia, e prescrever medicamentos. Mas posso garantir-vos que existe uma verdadeira escassez de serviços de saúde mental em Gaza, e de serviços médicos em geral. Precisamos de uma enorme quantidade de ajuda para ultrapassar esta situação.

 

“REZAMOS E ESPERAMOS QUE O FOGO SE APAGUE, QUE AS MORTES PAREM, QUE A DESTRUIÇÃO DO QUE RESTA CESSE.”

 

QUANTOS DOENTES ATENDEM POR DIA?

Quando começámos com dois postos médicos em Rafah, conseguíamos ver 600 a 700 doentes por dia.

 

COMO É QUE CONSEGUEM TRABALHAR NESTAS CONDIÇÕES, APESAR DA INSEGURANÇA QUE TAMBÉM VOS AFETA?

O que importa referir é que mesmo a nossa equipa sofre múltiplos traumas todos os dias. Muitos de nós perderam alguém próximo, um amigo, um familiar, todos nós perdemos as nossas casas. E o trauma grave e repetido que sofremos é o de ter de fugir regularmente de um sítio para outro. Nos últimos oito meses, alguns dos meus colegas tiveram de se mudar cinco ou seis vezes. Portanto, sim, estamos a fazer o nosso melhor para ajudar as pessoas. Estamos a sofrer, mas ainda podemos ajudar os outros. Sabemos o que estão a passar, porque estamos a passar pelo mesmo. Compreendemos a sua situação e isso pode ajudar-nos a encontrar soluções em conjunto, por vezes. Soluções quotidianas: como encontrar comida, como encontrar transporte, como lidar com a sobrelotação, com os problemas de higiene, com os insetos que proliferam, porque não há tratamento de esgotos. Mas nós também precisamos de ajuda. A nossa equipa precisa de ajuda.

 

QUAL É A ATUAL SITUAÇÃO SANITÁRIA NA MIDDLE AREA?

Quando o exército israelita deu ordem de evacuação de Rafah, as pessoas fugiram em direção a Deir el-Balah. A distância entre Rafah e a Middle Area não é mais do que 15 quilómetros, mas a única estrada considerada segura é a que segue ao longo da costa, que está completamente tomada por viaturas e carroças. A viagem demora duas horas. A Middle Area começou a ficar sobrelotada. O sistema de tratamento de águas residuais, que funciona a gasóleo ou fuelóleo, não consegue bombear a água para o mar devido à escassez de combustível. As ruas estão cheias de água residuais. Prevemos epidemias, casos de hepatite A, doenças infeciosas e doenças da pele. Os casos de hepatite A, por exemplo, eram comuns entre os nossos pacientes em Rafah. Demos orientações sobre questões de higiene, formas de cuidar dos doentes e de quebrar a cadeia de infeção. Penso que em breve teremos os mesmos casos na Middle Area, devido à sobrelotação, à permanência em tendas e às condições dos campos.

 

ATUALMENTE, A MIDDLE AREA CONTINUA A SER O LOCAL MAIS SEGURO DE GAZA?

De acordo com a ordem do exército israelita para evacuar Rafah, sim, é a zona mais segura. Na realidade, continuamos a enfrentar bombardeamentos indiscriminados, especialmente a leste de Deir el-Balah. E já nada entra em Gaza. Não há alimentos, medicamentos e tendas. Há novamente escassez de tudo. O preço dos alimentos duplica ou triplica. Devido à falta de combustível, por exemplo, as padarias não podem funcionar e é impossível encontrar pão. Tudo o que ainda conseguimos encontrar provém de entregas que chegaram a Gaza nos últimos meses. No mercado de Deir el-Balah, encontram-se enlatados: feijão branco, favas, carne enlatada. Há falta de alimentos frescos, mercearias, legumes, arroz, carne, leite e ovos. Tenho três filhos, o mais velho tem seis anos. Há dois meses que não comem ovos. Estamos sempre à procura de formas para os alimentar. Tentamos manter algumas reservas de feijão. Estamos a guardar um quilo de arroz. Mas esperamos o pior, porque não há solução. Já se tentaram tantas coisas. Estamos a perder a esperança.

É como uma doença infeciosa, toda a população em Gaza está a perder a esperança. A Middle Area não está adaptada a um tal afluxo de pessoas. Não há água potável. Mesmo a água salgada, que é utilizada para certas necessidades de higiene, lavar as mãos e tomar duche, não é suficiente, tendo em conta o número de pessoas na zona. A água chega às casas cerca de uma vez por semana, para encher os bidões. As pessoas estão a lutar por esta água. Se tiverem dinheiro para a comprar, mil litros custam 100 shekels, ou seja, 25 euros.

 

O QUE É QUE A POPULAÇÃO DE GAZA ESPERA HOJE?

Não olhamos muito para o futuro. Procuramos ver cada dia. Rezamos e esperamos que o fogo se apague, que as mortes parem, que a destruição do que resta cesse. Atualmente, não temos muita fé no futuro. Estamos todos a planear sair de Gaza. Talvez não agora, talvez amanhã, talvez daqui a uns anos. Porque a menor destruição causada pelas anteriores escaladas militares, há dez anos, ainda não foi reparada. Com o que está a acontecer hoje, prevemos que sejam necessários 100 anos para resolver os problemas, reconstruir a vida das pessoas, reparar casas, abrigos, instalações sanitárias e tratamento de esgotos. Vai demorar muito tempo. É por isso que estamos a perder a esperança.

Tudo o que queremos é que os bombardeamentos parem, que possamos andar na rua e não estar sempre a pensar que vamos morrer nos cinco minutos seguintes. Não há escolas para as crianças. Nos campos, as pessoas estão a tentar juntar as crianças para brincar e oferecer-lhes apoio psicossocial. Um dos membros da nossa equipa de saúde mental participa nestas atividades. Mas eu não quero mandar os meus filhos para lá. Nenhum sítio é seguro. Nem mesmo as zonas determinadas seguras pelas ordens de evacuação. Não se trata apenas de tanques ou operações terrestres, são também ataques aéreos ou bombardeamentos, que podem acontecer em qualquer lugar, a qualquer momento. Lamento dizê-lo, mas prefiro morrer com os meus filhos do que ter um deles a morrer longe de mim. O meu pai estava doente, quando o exército israelita levava a cabo operações em Khan Younis. O único médico que cuidava do meu pai, que o tratava, que lhe punha o soro intravenoso, era eu. Não havia nenhum outro médico. Não havia medicamentos. Nada. Ele morreu em três dias. Esta história não é minha, é a história de todas as famílias de Gaza.

 

APOIE O NOSSO TRABALHO EM GAZA. FAÇA UM DONATIVO HOJE! 

Estamos a envidar todos os esforços, em coordenação com  agências internacionais, parceiros locais e redes humanitárias, para garantir uma assistência eficaz e com impacto para as populações. Se quiser ajudar a apoiar os nossos esforços em Gaza, clique no botão abaixo.