Esta tese de doutoramento em Ecologia Humana teve por base uma investigação exploratória que englobou 34 mulheres, entre os 18 e os 68 anos. As “especificidades na situação das mulheres”, o “muito pouco conhecimento sobre esta realidade”, em termos nacionais e internacionais, a experiência de voluntariado que trouxe os primeiros contactos com as pessoas em situação de sem-abrigo e as histórias de algumas mulheres que Sónia Nobre foi conhecendo, contribuíram para a escolha do tema.
Antes de mais, segundo a autora, “houve uma separação de papéis entre voluntariado e investigação, e não recorri à Médicos do Mundo (MdM) para recrutar participantes para o meu estudo”.
Pela sua natureza, o trabalho implicou vários desafios: a dificuldade em aceder às pessoas, a manutenção do contacto regular com algumas participantes, a adaptação à realidade destas mulheres e a gestão da sensibilidade na partilha das suas histórias de vida.
“Estratégias de invisibilidade”
Embora não seja possível traçar um perfil da mulher em situação de sem-abrigo/exclusão habitacional, de acordo com Sónia Nobre, há fatores que se destacam, como “pobreza, trajetórias de emprego marcadas por precariedade, desemprego e apoio muito limitado por parte das redes informais de suporte, nomeadamente ao nível da família”.
Foi possível identificar alguns aspetos que tendem a diferenciar esta situação nas mulheres, tal como descrito na literatura internacional, nomeadamente as relacionadas com violência doméstica e rutura de relacionamentos, em contexto de vulnerabilidade económica.
“As mulheres tendem a evitar o contexto de rua - nomeadamente por questões de segurança - e a adotar estratégias de invisibilidade”, explica a investigadora. Em muitos casos, primeiro procuram soluções informais, de forma autónoma, e só mais tarde, quando estas soluções se esgotam ou se revelam temporárias, precárias e/ou inseguras, recorrem aos serviços de apoio.
A determinação, a coragem e a resiliência destas mulheres, face à situação em que se encontram, foram alguns dos aspetos que mais surpreenderam a autora.
Importância da maternidade
Das 34 participantes no estudo, 26 são mães. O tema dos filhos foi mesmo um dos mais relevantes e emotivos, segundo Sónia Nobre. “A maternidade é um elemento estruturante das suas identidades e do seu sentido de valor e propósito”, refere, destacando o desejo de “reforçarem ou restabelecerem os seus papéis como mães”.
Apesar das circunstâncias que envolvem a separação dos filhos ainda necessitarem de estudo adicional, foram identificados fatores como pobreza, violência no seio da família e falta de apoio informal. “A falta de recursos sociais e económicos pode ser muito limitativa ou mesmo impossibilitar que assegurem o cuidado dos filhos.”
Estas mulheres enfrentam ainda outras barreiras, nomeadamente a falta de informação sobre os apoios e serviços disponíveis e a relutância em aceder a determinadas respostas. Em alguns casos, a manutenção do acesso aos serviços é dificultada pela falta de dinheiro para os transportes públicos ou até por experiências anteriores interpretadas como negativas ou ineficazes.
É ainda de realçar que estas mulheres falam de si, sublinhando experiências e papéis que tiveram ao longo da vida e que a preservação da dignidade e do sentido de valor envolve, para muitas delas, o cuidado com a aparência e a integridade moral. Na explicação de como lidam com a situação em que vivem, mencionam otimismo, fé, sentido de autossuficiência e relações interpessoais, nomeadamente com os filhos.
Prevenção e respostas integradas
Tal como explica Sónia Nobre, os resultados da investigação apontam para a necessidade de “reforçar a prevenção”, nomeadamente em termos de informação sobre os serviços e apoios existentes; prevenção de situações de sem-abrigo em casos de violência doméstica, despejo e saída de instituições de acolhimento para crianças e jovens, assim como de estabelecimentos prisionais; e medidas sistémicas no âmbito da pobreza, proteção social, mercado de trabalho e desigualdade de género, entre outros aspetos.
No campo da intervenção, “são necessárias respostas integradas e centradas nas necessidades de cada pessoa, tal como está preconizado na Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo”, mas também “abordagens sensíveis ao trauma e às circunstâncias específicas das mulheres”.
Finalmente, “a necessidade de abordagens empoderadoras” e de “assegurar o acesso à habitação” em resposta à “necessidade crucial de segurança e estabilidade habitacional”.
Sónia Nobre
Médica especialista em Gastrenterologia, Sónia Nobre foi voluntária da MdM entre 2011 e 2016, com participação em projetos nacionais (Saúde Móvel) e internacionais (respondendo à epidemia do VIH/SIDA em Moçambique; prevenção e controlo da malária, igualmente em Moçambique). Entre os aspetos que mais a marcaram no Saúde Móvel, recorda “a solidão e a necessidade de conversar e de ser ouvido(a) com tempo e sem julgamento”, guardando na memória “exemplos de resiliência e capacidade de superação”.
Em 2020, voltou ao voluntariado na MdM, no âmbito do apoio nas respostas de alojamento provisório para pessoas em situação de sem-abrigo, na cidade de Lisboa, face à pandemia da COVID-19