A propósito do Dia Nacional do Psicólogo, que se assinalou esta quinta-feira, 4 de setembro, falámos com Rute Mendes, psicóloga no Projeto SER – Saúde em Equipa de Rua, em Barcelos.

5 de setembro de 2025
 


O Projecto SER, implementado pela Médicos do Mundo em Barcelos, visa melhorar a saúde, proteção social e qualidade de vida de pessoas consumidoras de substâncias psicoativas, através de programas de Redução de Riscos e Minimização de Danos (RRMD). Rute partilhou connosco o que a inspira, os desafios da intervenção em contextos de vulnerabilidade e o papel da psicologia na promoção da dignidade humana.
 
O que te motivou a seguir psicologia e a trabalhar em contextos de vulnerabilidade?
Rute Mendes (RM): Sempre tive interesse na forma como o nosso cérebro e o nosso contexto podem ter um impacto tão grande em tudo o que somos e fazemos. A escolha por psicologia acabou por surgir com o aumento desse interesse ao longo dos anos. Os contextos de vulnerabilidade surgiram de forma natural com os anos de curso e sobretudo após ter tido contacto com cadeiras sobre redução de danos e de comportamentos aditivos. A psicologia pode ter um papel importante, não apenas no apoio individual que pode prestar, mas também na luta pela dignidade humana e na proximidade.
 
Como descreves o trabalho da equipa do Projeto SER em Barcelos?
RM: O SER é um projeto de proximidade, essa é a palavra que melhor define a relação que temos entre técnico-utentes. A intervenção é desenvolvida junto dos utentes e para eles, sob a premissa base da humanidade e do respeito. Como equipa de RRMD é sempre respeitada a vontade do utente, nomeadamente no querer manter os consumos ativos. Dentro das atividades do projeto contamos com a distribuição de material de consumo mais seguro, material preventivo (ex: preservativos e lubrificante), apoio psicossocial, cuidados de enfermagem, ligação aos serviços sociais e de saúde, entre outros. Assim, temos utentes a procurarem-nos diariamente pelas mais variadas razões, mas também temos aqueles que nos procuram apenas para contar uma novidade, tomar um café ou dar uma “olá”. É assim que percebemos que a nossa presença é uma presença de conforto, um “porto seguro”. Esta confiança/relação que se cria é também aquela que depois nos permite ajudar os utentes a atingir os seus objetivos e é uma confiança que temos de conseguir manter e não quebrar. 
 

 

entrevista_rute mendes

 
 
Que desafios encontras no trabalho com pessoas em situação de sem-abrigo, utilizadoras de drogas e que exercem trabalho sexual?
RM:
Um dos principais desafios é lidar com os efeitos duma exclusão/estigmatização social muitas vezes prolongada. Isto gera desconfianças nos serviços e uma sensação de desesperança em muitas pessoas, há inclusive uma internalização do estigma de forma tão acentuada que vemos utentes a acharem que não têm direitos ou que não os merecem. Lembro-me de nas primeiras semanas de trabalho ouvir por várias vezes a expressão “sou lixo” e de isso mexer comigo. 
Depois temos as dificuldades associadas à escassez de respostas, e à sua adequação. Nem sempre é fácil ou imediato percebermos que não somos todos iguais, que não temos todos as mesmas necessidades e que por isso um modelo de intervenção igual não vai funcionar com todos de nós. Já temos algumas respostas que surgem precisamente por se tentar adaptar os serviços e as respostas a variadas necessidades, mas ainda são muito poucas para responderam à necessidade real. 
Assim, temos de continuar a procurar mais e melhor, a persistir e insistir na luta pelos direitos humanos, e a trabalhar em rede.
 
Que estratégias psicológicas são mais eficazes neste tipo de intervenção?
RM:
A estratégia mais importante é a criação de relações terapêuticas seguras. Para isso temos de nos focar na capacidade empática, na escuta ativa e no respeito e aceitação. 
A nossa abordagem tem de respeitar o ritmo da pessoa e devemos ser pragmáticos ao estabelecer objetivos com os utentes. Devem ser estabelecidas metas realistas ou vamos estar a colaborar para a nossa própria frustração e da pessoa com quem estamos a trabalhar. 
 
Há alguma história ou momento que te tenha marcado particularmente?
RM:
Existem vários, até porque todos os dias acontece algo que fica connosco para relembrar. Poderíamos facilmente cair na tentação de enumerar os momentos menos bons, como a perda de alguns utentes, mas acho que os momentos bons serão sempre superiores. E às vezes esses momentos podem ser tão simples como ouvir um “gosto de falar convosco porque me ouvem”, descobrir finalmente o verdadeiro nome de um utente ao fim de vários meses a construir a relação ou o primeiro ”achas que me podes ajudar com isto?”.
 
Como cuidas da tua própria saúde mental enquanto cuidas dos outros?
RM:
Cuidar de nós mesmos é sem dúvida importante, mas admito que nem sempre é o mais fácil. Costumo inclusive brincar em equipa que nós técnicos somos os piores utentes. Tento, no entanto, estabelecer limites entre a vida pessoal e o trabalho, e valorizo muito os momentos de lazer (que no meu caso estão muitas vezes ligados a viajar). Igualmente importante é cuidar da nossa saúde física e manter uma rede de suporte pessoal e profissional saudável com quem possamos partilhar as dificuldades que vamos vivenciando no dia a dia. 
 
O que te inspira no dia a dia do teu trabalho?
RM:
Presenciar a resiliência das pessoas, ver como algumas pessoas que já tiveram uma história de vida particularmente difícil se conseguem reerguer e continuar, é especialmente inspirador. Depois, inspira-me saber que podemos realmente ter um impacto positivo na vida de alguém - e às vezes falo de coisas que podem parecer mesmo pequeninas aos olhos de outra pessoa, mas que quem trabalha nesta área sabe que significam uma grande vitória para aquela pessoa em específico. 
Inspira-me também o trabalho em equipa. Há um coletivo que trabalha todos os dias comigo e que está igualmente comprometido com o projeto e com os utentes. 


"Devemos construir soluções 'com' as pessoas e não simplesmente 'para' elas.”
 

Há alguma frase, livro ou pessoa que te tenha marcado na tua prática profissional?
RM:
Acho que há uma frase que se enquadra bem nos contextos de vulnerabilidade, que é “Nada sobre nós sem nós”. Reflete o princípio segundo o qual as pessoas devem ser ativamente envolvidas na sua intervenção. Devemos construir soluções “com” as pessoas e não simplesmente “para” elas.
 
Se pudesses mudar uma coisa na forma como a sociedade vê a saúde mental, o que seria?
RM:
Mudaria a ideia de que a saúde mental é uma questão que apenas “afeta alguns” e que se resolve com “força de vontade”. 
A saúde mental está ligada a vários fatores, nomeadamente à nossa condição de vida. Pode ser afetada pelas nossas necessidades de habitação e alimentação, pelo acesso a cuidados de saúde e sociais, pela discriminação, etc. 
Facilmente desvalorizamos o sofrimento psíquico por não ser “visível” e é ainda muitas vezes considerado uma fraqueza. A saúde mental deve ser vista como uma parte essencial da nossa saúde e como um direito. 
 
Que mensagem gostarias de deixar neste Dia Nacional do Psicólogo?
RM:
Deixo uma mensagem de reconhecimento a todos os colegas que muitas vezes em contextos difíceis e/ou invisíveis continuam a dar o seu melhor para escutar, apoiar e cuidar. 
Mantenham um compromisso por uma psicologia humana que não fecha os olhos às desigualdades.