Por Fernando Vasco, presidente da Assembleia Geral da Direção da Médicos do Mundo
Estamos a viver o início de uma reforma da saúde em Portugal com a organização do SNS em Unidades Locais de Saúde (ULS).
Embora os defensores da privatização do sistema de saúde português e muitos detratores do SNS não o refiram, os serviços públicos de saúde têm feito muito pela saúde dos portugueses que neles confiam, apesar das dificuldades. A evolução dos indicadores de saúde do País desde a criação do SNS mostra isso mesmo e um estudo da OCDE mostra que a gestão das doenças crónicas pelo sistema de cuidados de saúde primários é melhor que nos outros países considerados (Fig 1).1
Figura 1. A gestão das doenças crónicas pelo sistema de cuidados de saúde primários é melhor do que noutros países
Em nosso entender, a construção de pensamento estratégico sobre o reforço do SNS não pode ser feita sem refletirmos sobre o documento “Saúde e Serviço Nacional de Saúde – 10 teses para uma década”, da Fundação Para a Saúde – Serviço Nacional de Saúde (FSNS). Em dez pontos estão identificadas as áreas que devem ser trabalhadas para se reforçar o SNS, a saber:
- Saúde como património comum e bem público – implicações práticas
- Promoção da saúde, prevenção e saúde pública – prioridades emergentes
- Integração e continuidade de cuidados, centradas nas pessoas
- Profissões e profissionais de saúde – necessidade de políticas inovadoras
- Participação em saúde - literacia, capacitação e cidadania
- Cuidados de proximidade – redes locais interativas e colaborativas
- Governação da saúde - modelo, arquitetura, cultura e práticas
- Sistemas de informação de saúde - centralidade no cidadão
- Financiamento e investimento na saúde – modelo e focos
- Bem comum, conflito de interesses e regulação sistémica
Se o desenvolvimento do modelo ULS se processar dentro das dez vertentes propostas, acreditamos que a reforma será bem-sucedida. Temos consciência de que há muito a fazer. Uma reforma desta natureza exige mudanças organizacionais profundas e não acontece por decreto.
As ULS, enquanto modelo organizativo, promovem uma abordagem integrada das necessidades de saúde da população, considerando os problemas de saúde e seus determinantes identificados no Plano Local de Saúde. Elas propõem um modelo de gestão que privilegia a proximidade (Tese 6), a integração transversal de todos os atores no terreno por cada nível de cuidados e a integração vertical dos diferentes níveis (Tese 3).
Moldar a organização em função das necessidades
A principal ameaça ao funcionamento das ULS será organizá-las e geri-las em função das necessidades do hospital, nomeadamente na utilização dos recursos , sejam eles humanos ou financeiros, pondo em causa o funcionamento de todo o conjunto. Este é um risco real, pois a mentalidade que predomina no SNS é, nitidamente, “hospitalocêntrica”. Apesar do SNS preconizar uma filosofia que privilegia a promoção e prevenção da saúde, há um investimento baixo nestas áreas prioritárias - menos de 2% das despesas correntes com a saúde (Tese 2).2,3
Com esta mentalidade , estamos a colocar os “Deuses da Medicina” no hospital, mas também colocamos os “Demónios”.
Importa, então, de reconhecer que é necessário empoderar a linha da frente. Nos últimos anos, a incapacidade de colocar os centros de saúde a responderem às necessidades, tem aumentado. Não se trata apenas da carência de profissionais de saúde. Há uma desvalorização do trabalho dos centros de saúde (CS), pretendendo que eles sejam apenas um tampão que evite o recurso aos serviços de urgência hospitalares.”.
Valorizar o trabalho dos CS passa por dar-lhes mais recursos, humanos e técnicos, e por adotar novas formas de organização, algumas já testadas, que garantam uma maior acessibilidade dos cidadãos aos cuidados.
Por exemplo, se colocarmos meios complementares de diagnóstico (Raio X simples e análises básicas) nos CS, muitas “urgências” deixarão de ser remetidas para os Hospitais de referência. Há também procedimentos simples que se foram perdendo com o tempo, nomeadamente nas áreas da pequena cirurgia e da traumatologia, que devem ser recuperados.
Entre os aspetos organizativos que podem melhor o acesso e a efetividade dos CS, diminuindo o êxodo de doentes para o hospital, sugerimos a criação de equipas multidisciplinares que absorvam a procura. Assim o acesso a cuidados deixa de estar exclusivamente centrado no médico de família, e é distribuído, segundo critérios rigorosos, pelos diversos profissionais da equipa, aumentando assim a capacidade de resposta.
Neste modelo, os profissionais não médicos, nomeadamente os enfermeiros, desempenham um papel de grande relevo no acompanhamento de um conjunto de situações, nomeadamente na vigilância de saúde e acompanhamento de doença crónica, libertando o médico para atividades clínicas que só ele está habilitado a realizar.
Também a deslocação de equipas de determinadas especialidades hospitalares aos CS, para realizarem consultas de referência e para apoio direto aos profissionais locais, é de enorme valor, no sentido do referido empoderamento, evitando muitas das idas ao hospital (Ex: Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Saúde Mental).
A articulação de cuidados devia ainda ter em conta procedimentos organizados com ganhos de eficiência. Por exemplo, não faz qualquer sentido um utente, após ser observado pelo seu médico de família e ter necessidade de fazer um Raio X do tórax, ir para uma consulta de urgência hospitalar, e após várias horas de espera, ser observado novamente por outro médico para lhe ser realizada a radiografia . Tem de haver, nestas situações, uma linha direta entre o CS e o Hospital, tendo em conta as necessidades dos utentes.
Monitorização/supervisão do processo de reforma
A segunda questão tem a ver com a forma como se vai processar a monitorização/supervisão deste processo de reforma. É irrealista esperar que, sem acompanhamento, todas as administrações mudem as suas tradicionais práticas de gestão, algumas muito pouco ortodoxas face ao disposto para os serviços público. A notícia vinda a público recentemente, de que a Administração do Hospital de Braga, num mês, adjudicou por ajuste direto contratos no valor de quase 11 milhões de euros, ilustra bem a necessidade do rigoroso acompanhamento que propomos.4 Situações destas só são possíveis por total incapacidade de planeamento e configuram, pelo menos, irregularidades processuais.
Para finalizar o tema ULS, importa dizer que um estudo realizado pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS)5 ao acesso a cuidados, à qualidade dos serviços, à eficiência produtiva e ao desempenho económico-financeiro das ULS, não é animador no que toca aos resultados obtidos. Na verdade, apenas uma das oito ULS avaliadas apresenta resultados positivos face a estruturas similares do SNS não organizadas em sistema ULS. Será importante determinar o que torna essa ULS diferente das outras.
Não tendo uma bola de cristal, aponto a possível conjugação de três fatores: i) Órgãos dirigentes empenhados na mudança do paradigma de gestão; ii) Unidade de Saúde Pública forte e interveniente e iii) interlocutores comunitários ativos, perfil epidemiológico da população abrangida.
Aposta na promoção da saúde e prevenção da doença
Reforçar o SNS passa também por uma gestão que tenha como objetivo melhorar a saúde da população que serve, o que implica uma aposta forte na promoção da saúde e prevenção da doença (Tese 2). Para tal, são necessários um sistema de informação centrado no cidadão e uma unidade de saúde pública robusta6. Enquanto o primeiro recolhe informação com valor epidemiológico, a partir dos contactos dos cidadãos com os diversos serviços de saúde da ULS, a segunda trabalha essa informação e fornece-a a toda a ULS, não só para a apoiar a gestão clínica, mas também para a identificação das necessidades de saúde prevalentes, permitindo a definição de estratégias para o seu controlo (Teses 3 e 8), desde a promoção de saúde aos cuidados de reabilitação e de integração social.
Uma outra vertente para o uso da informação é a avaliação, não só da produtividade, mas também do desempenho da ULS, cujos resultados deverão alimentar de forma coerente, um sistema de informação nacional. Concordamos que “Falta uma abordagem sistémica ao desempenho do país que permita fundamentar com dados objetivos a resposta a questões cruciais como, estamos ou não melhor ou o que precisamos mudar.”.7 Pretende-se que se identifiquem e se acompanhe a evolução de um conjunto de indicadores que nos permitam medir o desempenho do país e, portanto, aquilatar da justeza das medidas tomadas. Só assim poderemos gerir a Saúde do país e credibilizar a reforma, seja ela qual for. Apesar dos indicadores de saúde e bem estar só serem analisáveis a médio e longo prazo, há que identificar um conjunto de indicadores intermédios, de processo, que irão avaliando os ganhos em saúde.
Notas:
1 OECD; European Observatory for Health Systems and Policies; Estado de Saúde na União Europeia. Portugal. Perfil de saúde do País 2021. Pp. 13
2 Fundação para a saúde Estados Gerais – Transformar o SNS – Conferencia IV_Setúbal 2023 – Lab.de Ideias I – ULS_ Desafios_Perguntas_v. 6_2023.06.28 (Texto de apoio decorrente de trabalho preparatório, individual e coletivo)
3 OCDE: Health at a Glance 2022, pp. 137
5 Entidade Reguladora da Saúde; Estudo sobre o desempenho das Unidades Locais de Saúde. Fevereiro de 2015.
6 O facto de o Governo estar a pensar retirar o regime de disponibilidade permanente aos médicos da Carreira de Saúde Púbica, não parece um bom prenúncio. In https://www.sindicatomedicosnorte.pt/conteudos/9081/queremos-um-ministro-que-perceba-de-saude/