Defender o direito à Saúde, implica desenvolver o SNS. Os serviços privados não são solução, contudo, fazem parte dela. 

 

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Por Fernando Vasco, presidente da Assembleia Geral, e Celeste Gonçalves, vice-presidente da Direção da Médicos do Mundo

 

Neste dia 15 de Setembro em que se comemora o 43º aniversário do Serviço Nacional de Saúde (SNS), ocorreu-nos fazer a reflexão que se segue.

Temos vindo a assistir nos últimos anos ao avolumar das dificuldades do SNS. São muito evidentes os problemas do acesso aos cuidados com o consequente aumento das listas de espera. 

Entendemos haver, pelo menos, duas situações de fundo que determinam este declínio: a incapacidade de quem defende o SNS o defender de facto (falta de empenho, de vontade política, de visão estratégica e incapacidade organizativa, nomeadamente de planeamento) e, à boleia das dificuldades, a pressão política dos grandes grupos financeiros que têm vindo a explorar as oportunidades de negócio no campo da saúde.

Defender o SNS exige uma forte liderança caraterizada por vontade política, visão estratégica, empenho, capacidade organizativa, nomeadamente de planeamento, e coragem para implementar as medidas necessárias. Quem defende o SNS tem de o fazer, primeiramente, no campo político e ideológico. Não tenhamos medo das palavras. Há que enunciar publicamente, de forma firme e clara, os princípios e valores que orientam o SNS. Esse enunciado tem de ser acompanhado por um conjunto medidas coerentes, não avulsas, que se orientem para a solução dos problemas que estão a impedir o desenvolvimento do SNS.

O SNS justifica-se enquanto instrumento que a sociedade portuguesa tem utilizado para defender o Direito à Saúde para todos os presentes em território nacional, cumprindo assim os preceitos constitucionais (Artigo 64 da Constituição Portuguesa) e o disposto na Declaração Universal dos Direitos do Homem (Artigos 1.º, 3º, 7.º e 25.º). O fim último do SNS é a Cobertura Universal de Saúde, mobilizando, organizando e coordenando todos os recursos disponíveis dos sectores público, privado e social. A Saúde, tal como a Educação, são áreas que ao serem acessíveis a todos, potenciam de forma determinante o desenvolvimento de um país. 

É necessário, no campo da economia, sermos claros. Temos que afirmar que a saúde é um bem de mérito, conceito que introduz considerações éticas no pensamento económico, não transacionável, e não um bem económico “tout court”. Importa clarificar o que isto significa junto da população, fundamentalmente para que se entenda que a defesa da promoção da atividade da iniciativa privada com fins lucrativos no campo da saúde, sendo legítima, para além de não dever colidir com os interesses do SNS, levanta questões económicas e sociais relevantes que importa considerar, nomeadamente quando queremos proteger toda a população. Este aspeto não pode ser ignorado. Vivemos num mundo onde predominam as doutrinas dos economistas liberais, os alquimistas contemporâneos, que a pretexto quererem o bem comum, propõem medidas que, objetivamente, transformam a riqueza produzida pelo trabalho de milhões de pessoas, em “ouro” que reverte maioritariamente para apenas 10% da população mundial1,2. A diferença cada vez mais acentuada entre a remuneração do trabalho e a remuneração do capital, tem também impacto na área da Saúde e obriga-nos a refletir.  Fazemos nossas as palavras de Mark Stoll3 que assentam na evidência. “Mesmo empresas nascidas com boas intenções podem tornar-se perigosas”. Segundo ele o capitalismo centrado nos acionistas, à medida que as organizações crescem, tende a esquecer as outras partes interessadas, trabalhadores, vizinhos, comunidade e o resto do mundo. Os grandes grupos privados que investem em hospitais, são um bom exemplo.  

Lembramos, que em tempos de globalização e de neoliberalismo, cabe às sociedades democráticas e respeitadoras dos direitos humanos demonstrar que o neoliberalismo e o poder reprodutor do capital não podem ser deixados sozinhos na evolução da humanidade. Há que proceder em conformidade e encontrar limites. Trata-se de criar um mundo em que o Zeca Afonso seja chamado de mentiroso. “Eles comem tudo e não deixam nada”. Suspeitamos que ele ia gostar. 

Defender o SNS requer uma enorme firmeza de princípios e medidas adequadas, pois quem tem um problema de saúde quer resolvê-lo, não lhe importando se o prestador é público ou privado. Haja quem pague. Daí a pressão dos privados para que, cada vez mais, as verbas do Orçamento Geral do Estado sejam usadas em seu benefício (convenções, parcerias, etc...), promovendo o papel do Estado  enquanto terceiro pagador e, porque os recursos são limitados, obrigando-o a desviar verbas para pagar os serviços prestados pelos privados, com prejuízo do financiamento do SNS no seu papel de prestador de cuidados. E quando não há quem pague?4,5 

Um estudo recente da Entidade Reguladora da Saúde (ERS)6 sobre o Setor Hospitalar não público (setor privado e social) conclui pela necessidade da ERS estar muito atenta, enquanto regulador, às possíveis distorções do “mercado” que resultam deste ser altamente concentrado e nele haver quatro grupos financeiros que são dominantes7. Curiosa foi a reação do presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada que, admirado (?) por haver “tantas regiões do país em que não exista sequer um hospital privado” assumiu que as conclusões do estudo lhe permitiam dizer publicamente “É oficial: Portugal precisa de mais hospitais privados”8. Descanse o senhor presidente porque esta ausência tem uma explicação simples. As regiões em causa são as menos povoadas e menos ricas do país, logo, não havendo quem pague a despesa, não é bom negócio investir nelas.

Se dúvidas houver, nada melhor do que refletirmos sobre os objetivos de cada um destes atores, públicos e privados com fins lucrativos. As atividades dos serviços públicos visam promover a melhoria da saúde individual e coletiva da população. As atividades dos serviços privados com fins lucrativos visam remunerar os seus acionistas. E, se não houver uma forte regulação, até promovem a realização de atos mais caros e, às vezes, esquecendo as boas práticas, com riscos acrescidos para a saúde dos indivíduos. O que acontece com os partos por cesariana, que atingem proporções elevadíssimas nos hospitais privados, é um bom exemplo desta questão e acontece em todo o mundo9. Portugal está entre os 10 países da Organização Para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com uma taxa de cesarianas mais elevada, com 32,5% dos partos, acima dos 28% da média de mais de 30 países e já acima do valor dos EUA10

Reafirmamos. Na defesa do SNS temos de ser firmes, sérios e claros. Não se trata de estarmos contra a iniciativa privada. Nós próprios pertencemos à Médicos do Mundo, uma organização privada sem fins lucrativos. Trata-se de não permitir que a iniciativa privada, nomeadamente os grandes grupos financeiros, tomem conta do setor da Saúde, nomeadamente influenciando a natureza das políticas públicas, coisa que tão bem fazem em todo o mundo. Aliás, desde a sua fundação, o SNS sempre conviveu com os serviços privados, recorrendo a eles para complementar as suas capacidades, nomeadamente nas áreas de meios complementares de diagnóstico e terapêutica e no acesso ao medicamento. 

Com tudo isto, queremos dizer que, ao defender o SNS enquanto prestador público de serviços e modelador/regulador de todo o sistema de saúde português, em oposição a um sistema fortemente influenciado pela prestação privada, aceitamos a acusação de que temos um preconceito ideológico face aos serviços privados pertencentes a grandes grupos financeiros. Devolvemos a acusação a quem a faz, pois, por cegueira ou por malícia, julgam não ter preconceitos sobre esta matéria, o que não corresponde à realidade. 

Primeira parte do artigo, composto por duas partes.
A segunda parte será publicada nas próximas semanas. 

 

Notas:

1 No mundo há 780 milhões de pessoas a viver abaixo do limiar da pobreza (1,90 dólares/dia) e os 10% mais ricos controlam 76% da riqueza global, e os 50% mais pobres apenas 2%. 

2 Em Portugal (2020), 18% da população vive abaixo do limiar da pobreza (540€/mês) e 9,5% da população empregada é considerada pobre. Temos 136.430 milionários (mais 19430 face a 2019).

3 In Jornal Público de 17 de Agosto de 2023.

4 OCDE, “o Serviço Nacional de Saúde tem sido um pilar no acesso da população a cuidados médicos, mas que os portugueses continuam a suportar custos diretos muito elevados.” Estes pagamentos do próprio bolso (29% do total das despesas de saúde em 2021 - média na OCDE de 18%) estão relacionados com serviços de prestadores privados, que são financiados muitas vezes por seguros de saúde. Em 2015, cerca de 11% dos agregados familiares tiveram de gastar mais de 40% do seu rendimento em assistência médica.

5 Metade da população mundial não tem acesso a serviços essenciais de saúde, 800 milhões de pessoas gastam pelo menos 10% de seus orçamentos domésticos em despesas de saúde e 100 milhões são empurrados para a pobreza extrema por causa dos gastos com saúde  in “Tracking Universal Health Coverage: 2017 Global Monitoring Report, WHO/WB”.

6 Entidade Reguladora da Saúde; Estudo Sobre a Concorrência no Sector Hospitalar não Público. 2023 

7 CUF, Luz Saúde, Lusíadas e Trofa Saúde 

8 Óscar Gaspar in Jornal Público de 15 de Agosto de 2023. 

9 O Brasil com 52% dos partos feitos por cesarianas (OMS recomenda 15%) é o país recordista mundial desse tipo de parto. Na rede privada, a taxa sobe para 83%.  

10 https://www.oecd.org/health/health-systems/Health-at-a-Glance-2019-Chartset.pdf