Todos os anos, milhões de mulheres veem o acesso à IVG segura ser-lhes negado. Destas, mais de 40% vive em países com leis restritivas em matéria de IVG.
Esta situação põe em risco a vida e a saúde das mulheres e das minorias de género, uma vez que a proibição do acesso não reduz o número de IVG, mas obriga as pessoas a recorrer a métodos inseguros que representam uma das principais causas de morbilidade e mortalidade materna. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 39.000 mulheres morrem todos os anos devido a IVG realizadas em condições inseguras.
Tal como refere a OMS, a falta de acesso a cuidados de IVG seguros, atempados, acessíveis e respeitadores é uma questão crítica de saúde pública e de direitos humanos.
O que exigimos?
Através dos nossos projetos, testemunhamos diariamente as graves consequências negativas para a saúde, causadas pela falta de acesso à IVG segura. Por isso, a MdM apela a todos os decisores e prestadores de cuidados de saúde, para que tomem medidas imediatas e garantam o acesso irrestrito a serviços de IVG segura.
A IVG deve ser reconhecida como um direito humano e uma parte essencial dos cuidados de saúde.
Apesar de a OMS e a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhecerem oficialmente a IVG como um serviço de saúde, muitos países ainda não obrigam os seus sistemas de saúde a seguir esta linha. A IVG continua a ser estigmatizada e os prestadores de serviços enfrentam o risco de criminalização, mesmo quando seguem as melhores práticas clínicas estabelecidas.
O acesso incondicional aos serviços de IVG é uma componente fundamental da Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos (SDSR); é uma questão de saúde pública e um direito humano básico. A SDSR engloba o direito a tomar decisões sobre a sexualidade e a reprodução livre e sem discriminação, coerção ou violência. Isto inclui o direito de aceder a serviços completos de saúde sexual e reprodutiva, apoiados por profissionais que respeitam estes direitos.
Apelamos aos Estados para que reconheçam a IVG como um direito humano, a tornem uma parte essencial dos cuidados de saúde e garantam o acesso livre e incondicional a serviços de IVG segura.
A IVG deve ser totalmente descriminalizada.
As limitações temporais e os fundamentos restritivos da IVG continuam a ser legalmente aplicados, apesar das Diretrizes sobre Cuidados referentes à IVG 2022 da OMS. Navegar por leis de IVG hostis e sistemas de saúde complexos é um desafio, especialmente para aqueles que não estão familiarizados com as nuances legais do seu país.
Estas barreiras afetam de forma desproporcional as pessoas que já enfrentam determinados obstáculos, nomeadamente relacionados com identidade de género, pobreza, violência doméstica, raça, religião, orientação sexual, deficiência e estatuto migratório.
Apelamos à descriminalização total da IVG a nível internacional, tanto para reduzir a mortalidade e a morbilidade parentais, como para garantir que os direitos humanos, a autonomia do corpo e a maternidade voluntária sejam plenamente respeitados.
Todas as barreiras administrativas à IVG devem ser eliminadas.
Mesmo em países onde a IVG é formalmente legal, as barreiras administrativas, tais como períodos de espera e limites de tempo, impedem frequentemente as mulheres de aceder a serviços de IVG segura. Não existe qualquer justificação clínica para obrigar alguém a submeter-se a aconselhamento ou a esperar antes de realizar uma IVG.
Estas práticas causam angústia desnecessária e privam as mulheres do direito de tomar decisões independentes sobre as suas vidas. Como a gravidez muitas vezes só é detetada por volta das oito semanas, os limites de tempo e os períodos de espera, em muitos países, dificultam ou mesmo impedem o acesso.
Exortamos os decisores políticos e os prestadores de cuidados de saúde a eliminarem todas as barreiras administrativas e legais, como os limites de tempo e os períodos de espera, para garantir um acesso sem entraves aos serviços de IVG segura.
Portugal e Moçambique: promovemos a literacia em SSR e IVG
Consultas de Saúde Sexual e Reprodutiva em Moçambique.
Entre 1999 e 2007, num contexto em que a lei portuguesa proibia e punia severamente as mulheres que realizassem a IVG por vontade própria, a MdM Portugal promoveu ações de literacia em Saúde Sexual e Reprodutiva (SSR): IVG e apoio psicossocial, com o objetivo de capacitar as mulheres com conhecimentos que permitissem a tomada de decisão de forma consciente e informada, assim como sobre os riscos associados à ausência de acompanhamento e vigilância médica.
Em 2007, foi aprovada a lei de IVG, que inclui o direito de escolha da mulher para a prática de IVG, desde que fosse realizada até às 10 semanas de gestação. A MdM incrementou a ação interventiva em SSR e IVG, através dos seus projetos, apostando em aconselhamento, literacia e apoio psicossocial.
As ações de literacia em SSR sobre IVG, são realizadas por equipas multidisciplinares (médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais) e focam-se em aspetos legais e de direitos reprodutivos e condições de acesso a serviços seguros, procedimentos clínicos, informações sobre contraceção e Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST). O apoio psicossocial promove espaços de escuta ativa e de partilha de angústias sociais, culturais e religiosas.
Em Moçambique, e desde 2014, a lei permite o direito de escolha das mulheres em realizarem a IVG até às 14 semanas. As nossas ações de literacia em SSR sobre IVG são realizadas por enfermeiros e ativistas, em sessões individuais e coletivas, dirigidas a líderes comunitários e outros interlocutores de referência das comunidades.
Campanha revela violência psicológica sobre mulheres
Linguagem depreciativa, obrigatoriedade de escutar o batimento cardíaco do feto, recusa de alívio da dor. Em Itália, pela primeira vez, a MdM mostra o que realmente acontece nas unidades de saúde às mulheres que não são ouvidas quando procuram realizar uma IVG.
Através da campanha “The Unheard Voice”, revelamos a violência psicológica generalizada a que estão sujeitas muitas das 63.000 mulheres que todos os anos querem interromper a gravidez no país.
Graças a uma experiência sonora imersiva, no interior de uma instalação desenvolvida para o efeito - uma estrutura transparente com uma pequena clínica ginecológica (na foto abaixo) -, o público pode escutar algumas das frases efetivamente proferidas pelos profissionais de saúde, tais como: “Devias ter pensado nisso antes!”, “Divertiste-te, agora pagas”, “Ela tem de sentir o batimento cardíaco do feto, é essencial!”, “Somos mulheres, temos de sofrer”.
Instalação da campanha “The Unheard Voice”, no interior da qual o público pode escutar o que acontece a muitas mulheres italianas, quando procuram aceder à IVG.
São testemunhos reais de mulheres – reunidos num relatório produzido pela MdM, sobre os obstáculos à IVG em Itália - que, perante o seu direito de solicitar uma IVG, sofreram abusos e violências inaceitáveis.
A situação em Portugal
A Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) em Portugal continua a enfrentar diversos obstáculos, tanto na legislação quanto na prática, que afetam o pleno acesso ao direito à IVG segura, revelam diversos relatórios recentes sobre a matéria.
Alguns dos principais obstáculos incluem:
- Limitação temporal: a IVG em Portugal circunscreve-se à comprovação de que a gravidez não excede as 10 semanas, constituindo um prazo demasiado curto, que limita o poder de decisão. Na União Europeia, 85% dos países permitem períodos mais longos.
- Objeção de consciência: muitos médicos em Portugal invocam objeção de consciência, o que reduz significativamente o número de profissionais disponíveis para realizar o procedimento. Em algumas regiões, em particular em áreas rurais e nas ilhas, a maioria dos profissionais recusa-se a realizar a IVG, dificultando o acesso e forçando as mulheres a deslocarem-se para outras áreas.
- Acesso desigual entre regiões: nem todos os hospitais oferecem o serviço de IVG. Em 2023, foi relatado que 15 unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não realizavam o procedimento, o que cria desigualdade no acesso, especialmente para mulheres em áreas rurais ou economicamente desfavorecidas.
- Falta de informação acessível: há uma carência de informação clara e acessível sobre os direitos reprodutivos e o processo à IVG, tanto nos hospitais quanto em fontes públicas. Essa desinformação faz com que muitas mulheres não conheçam o procedimento ou os seus direitos, atrasando o processo e aumentando a ansiedade.
- Estigma social e moral: em muitas áreas, especialmente fora dos grandes centros urbanos, o estigma em torno da IVG persiste. As mulheres podem enfrentar julgamentos e pressões sociais que dificultam sua decisão ou as impedem de procurar o serviço de saúde necessário.
- Desigualdade no tratamento: de acordo com relatórios e estudos recentes, em alguns casos, as mulheres que recorrem à IVG são tratadas de maneira diferente, com menos sensibilidade e empatia por parte dos profissionais de saúde, o que reforça o estigma e afeta negativamente sua experiência durante o procedimento.
- Acompanhamento insuficiente após o procedimento: os relatórios e estudos recentes também indicam existir casos de falta de acompanhamento adequado após a IVG, incluindo apoio psicológico e informações de saúde reprodutiva, o que pode impactar negativamente a recuperação das mulheres e o bem-estar emocional.
Estes obstáculos, tanto legais quanto práticos, somados à objeção de consciência e às barreiras geográficas e sociais, continuam a dificultar o acesso equitativo à IVG segura em Portugal. O país já descriminalizou a IVG, mas ainda enfrenta desafios significativos que afetam a implementação plena deste direito.
Tais problemas indicam a necessidade de reformas no sistema de saúde e ajustes nas políticas públicas para garantir que todas as mulheres tenham acesso à IVG segura, eficaz e sem discriminações.
Fontes consultadas:
- Relatório da Universidade de Lisboa: “O Direito à Interrupção voluntária da gravidez em Portugal: Avaliação dos direitos de facto”.
- Relatório da Universidade de Coimbra “A Interrupção Voluntária da Gravidez em Portugal: perspetivas legislativas e jurídico-constitucionais”.
- Estudo da Entidade Reguladora da Saúde “Acesso a Interrupção Voluntária da Gravidez no Serviço Nacional de Saúde”.