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A realização do Mundial de Futebol no Qatar colocou a questão dos Direitos Humanos (DH) na agenda mediática. Contudo, a dimensão do incumprimento dos DH no mundo é razão suficiente para que o tema não abandone a agenda mediática pois, mesmo países considerados democráticos e que dizem defendê-los, têm práticas altamente questionáveis nesta matéria. 

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Por Ernesto Carneiro, membro da Direção, e
Fernando Vasco, presidente da Assembleia Geral da Médicos do Mundo

 

Direitos Humanos: do que estamos a falar

Os Direitos Humanos são direitos inerentes a qualquer ser humano, independentemente da sua raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição.1 Tais direitos não são concedidos porque se é cidadão de um país ou se pertence a uma nação, mas cabem por direito a toda a humanidade. “Isso diferencia-os, em consequência, dos direitos criados constitucionalmente, garantidos a pessoas determinadas (tais como os cidadãos americanos ou franceses)”. Por exemplo, o direito a não ser torturado torna-se total e completo, independentemente do país de que se é cidadão e também do que o governo desse país entende ou pratica. Torturar um cidadão constitui, sempre, um flagrante atropelo aos DH2. Os Direitos Humanos são pedra angular da nossa humanidade.

Daí que o conceito de Direitos Humanos Universais seja uma ideia unificadora, independentemente do país onde vivamos, apesar da diversidade dos sistemas jurídicos existentes.

As Nações Unidas construíram um conjunto abrangente de leis sobre DH e exortam todos os países do mundo a subscrevê-las e a implementá-las. As bases desse corpo de leis são a Carta das Nações Unidas3 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos4 (DUDH), adotadas pela Assembleia Geral em 1945 e em 1948, respetivamente. A DUDH foi redigida com contributos de todas as regiões do mundo, procurando integrar todas as conquistas civilizacionais universalmente reconhecidas e que, como tal, devem ser defendidas. A DUDH, juntamente com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos5 e os seus dois Protocolos Facultativos (sobre o procedimento de queixas e sobre a pena de morte) e o Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais6 e o seu Protocolo Facultativo, formam a chamada A Carta Internacional de Direitos Humanos.

A Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (ONU) e o seu Primeiro Protocolo Facultativo (1976) e o Segundo Protocolo Opcional (1989) visam proteger  direitos como a liberdade de movimento; a igualdade perante a lei; o direito a um julgamento justo e à presunção de inocência; liberdade de pensamento, consciência e religião; liberdade de opinião e expressão; de reunião pacífica; liberdade de associação; participação em assuntos públicos e eleições; e proteção dos direitos das minorias. A Convenção proíbe a privação arbitrária da vida; a tortura, o tratamento ou punição cruel ou degradante; a escravidão e o trabalho forçado; a prisão ou a detenção arbitrária; a interferência arbitrária na privacidade; a propaganda de guerra; a discriminação; e a defesa do ódio racial ou religioso.

A Convenção Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais (ONU) entrou em vigor em 1976. Ela busca promover e proteger: i) O direito a trabalhar em condições justas e favoráveis; ii) O direito à proteção social, a um padrão de vida adequado e aos mais altos padrões atingíveis de bem-estar físico e mental e iii) O direito à educação e ao usufruto dos benefícios da liberdade cultural e do progresso científico.

Também uma série de tratados internacionais de Direitos Humanos e outros instrumentos adotados desde 1945 em sede da ONU expandiram o corpo do direito internacional dos Direitos Humanos, como a Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), entre outros.  

Pertinência do tema/breve olhar

Basta atentarmos às notícias dos media, para percebemos que a dignidade humana sofre atropelos diários. O último relatório da Amnistia Internacional7 analisa três tendências fundamentais no que toca ao estado dos DH no mundo i) “Saúde e Desigualdades”, agravadas pela pandemia da COVID-19 ii) “Espaço Cívico”, reportando uma tendência global para os países restringirem a liberdade de expressão de jure e de facto e iii) “Retrocesso do Norte Global” com ações lesivas dos DH, nomeadamente no que toca a refugiados e migrantes.

Salientamos também: 

A pobreza, intimamente associada aos processos de criação de riqueza e sua distribuição, é, provavelmente, o elemento mais presente nos casos de violação dos DH.  Hoje, mais de 780 milhões de pessoas vivem abaixo do Limiar Internacional da Pobreza (com menos de 1,90 dólar por dia). Mais de 11% da população mundial vive na pobreza extrema e luta para satisfazer as necessidades mais básicas na esfera da saúde, educação e do acesso à água e ao saneamento. Por cada 100 homens dos 25 aos 34 anos, há 122 mulheres da mesma faixa etária a viver na pobreza, e mais de 160 milhões de crianças correm o risco de continuar na pobreza extrema até 2030.8

Em contrapartida, os 10% mais ricos controlam 76% da riqueza global, cabendo aos 50% mais pobres apenas 2%.9

Em relatório recente, a Oxfam10 refere, citando o Banco Mundial, que: “a desigualdade e a pobreza globais estão a aumentar ao ritmo mais rápido desde a Segunda Guerra Mundial”; “desde 1995, 1% do topo dos mais ricos capturou quase 20 vezes mais da riqueza global do que os 50% dos mais pobres da humanidade”; e “a riqueza dos 10 homens mais ricos duplicou, enquanto os rendimentos de 99% da Humanidade diminui por causa da COVID-19”.

O relatório refere ainda que “os lucros dos setores alimentares e energético aumentaram neste período inflacionista”, que “95 empresas destes setores mais que duplicaram os seus lucros neste período”, obtiveram “lucros inesperados num total de 306 mil milhões de dólares e pagaram 257 mil milhões dólares (84%) aos acionistas”. Parafraseando Gabriela Bucher, diretora executiva da Oxfam, “É tempo de pôr fim ao mito de que os cortes fiscais sobre os mais ricos resultam em riqueza de todos”.

Em Portugal, segundo a Pordata11, 18% da população está abaixo do limiar da pobreza e vive com menos de 540 euros por mês (2020) e 9,5% (11,2%) da população empregada era considerada pobre.

Segundo o Eurostat, em Portugal, a taxa de risco de pobreza ou exclusão social subiu de 20% em 2020 para 22,4% em 2021. Este aumento de 2,4% é o maior do ano nos países da União Europeia, tendo Portugal a 8ª taxa mais elevada (13ª em 2020)12

As frases que se seguem mostram bem como se veem estes dois mundos (pobres/ricos): “Os países pobres não produzem riqueza, produzem ricos” de Mia Couto e “Lucros excessivos na banca? Há hostilidade cultural ao capital e à sua acumulação” de Vítor Bento. 

A Fome - Segundo a ONU, entre 702 e 828 milhões de pessoas foram afetadas pela fome no mundo em 2021. O relatório da ONU “Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2022”, refere que o número de pessoas afetadas pela fome no mundo subiu para 828 milhões em 2021, cerca de 46 milhões mais desde 2020 e 150 milhões desde o início da pandemia de COVID-1913.

A Guerra - No mundo, há cerca de 82,4 milhões de pessoas que fogem de guerras, violência, perseguição e violações dos direitos humanos.14

Pessoas em situação de sem abrigo – Estima-se que na União Europeia existam cerca de 700 mil pessoas nesta condição. Este número representa um aumento de 70% em 10 anos, segundo as estimativas do último relatório da FEANTSA.15

O analfabetismo - Segundo a UNESCO a iliteracia atinge 773 milhões de pessoas no mundo.16

Acesso a cuidados de Saúde - Pelo menos, metade da população mundial não beneficia de cobertura integral pelos serviços de saúde essenciais. Mais de 800 milhões de pessoas (quase 12% da população mundial) gastam, pelo menos, 10% dos seus orçamentos familiares em cuidados de saúde.17

A desigualdade de género - Apenas 55% das meninas e mulheres, dos 15 aos 49 anos, possuem autonomia corporal de acordo com o relatório “Situação da População Mundial 2021: O meu corpo é meu – Reivindicando o direito à autonomia e à autodeterminação”. De acordo com o Fundo da ONU para a População (UNFPA), outro fator limitador da autonomia corporal é o casamento infantil. As estimativas indicam que existem, hoje, 650 milhões de mulheres que casaram antes dos 18 anos e, todos os anos, outras 12 milhões de meninas casam antes de se tornarem adultas. Estima-se que até 2030 mais 120 milhões de mulheres e meninas terão casado antes de completar os 18 anos.18

Relevam também as práticas nefastas sobre as mulheres jovens, que têm como fundamento razões culturais e religiosas. O UNFPA estima que mais de 200 milhões de mulheres e meninas em 31 países sobreviveram à mutilação genital feminina (MGF). Calcula-se que esta prática ocorre em mais de 90 países.19 

Em Portugal foram identificados 835 casos de MGF nos últimos nove anos, sendo raros os casos em que a prática ocorre no nosso país.

A maioria ocorre na Guiné-Bissau e na Guiné-Conacri (mais de 70% dos casos), mas também no Senegal, Nigéria, Costa do Marfim, Somália e Gambia.20

Liberdade de expressão – Muito considerada nas sociedades democráticas está intimamente relacionada com a liberdade de associação e de reunião pacífica. Segundo os Repórteres sem Fronteiras, entre 180 países, os dez em que a liberdade de expressão é mais afetada são Palestina, Síria, Iraque, Cuba, Vietname, China, Myanmar, Turquemenistão, Irão e Eritreia.21

Tortura - A tortura tem como propósito cruel quebrar o espírito humano, vencer toda a resistência física, psicológica e emocional dos seres humanos através do sofrimento. Proibida internacionalmente continua a ser usada, tantas vezes impunemente. Nos últimos cinco anos, a Amnistia Internacional denunciou relatos de tortura em pelo menos 3/4 do mundo – 141 países.22

Pena de morte - Condenar alguém à morte é negar-lhe o direito à vida. A pena de morte viola dois direitos humanos essenciais: o direito à vida e o direito a viver livre de tortura.23 A aplicação da pena de morte, no mundo, tem vindo a ser abolida de forma lenta, mas contínua.

Segundo a Amnistia Internacional, em termos globais, as execuções em 2020 decresceram, pelo quinto ano consecutivo, tendo atingido o número mais baixo na última década.

Representa uma redução de 26% quando comparado com 2019 e uma redução de 70% quando comparado com o número mais alto de sempre, 1.634 execuções em 2015. Apesar desta boa notícia, registaram-se, pelo menos, 483 execuções em 18 países. Estes dados não incluem as execuções que ocorreram na China, onde se estima que se realizaram mais de mil execuções no ano, no que faz dele o líder mundial no número de casos, à frente do Irão (246), Egito (107), Iraque (45) e Arábia Saudita (27). Estes quatro países foram responsáveis por 88% das 483 execuções contabilizadas nos 18 países referidos.24

Primeira parte do artigo, composto por duas partes.
A segunda parte será publicada durante a próxima semana. 

 

Notas:
1 https://unric.org/pt/o-que-sao-os-direitos-humanos/
2http://www.dhnet.org.br/direitos/indicadores/amartyasen/amartya_sem_dh_div_cultural.pdf
3 https://unric.org/pt/wp-content/uploads/sites/9/2009/10/Carta-das-Na%C3%A7%C3%B5es-Unidas.pdf
4 https://unric.org/pt/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
5https://www.cne.pt/sites/default/files/dl/2_pacto_direitos_civis_politicos.pdf 
6https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ECidadania/educacao_para_a_Defesa_a_Seguranca_e_a_Paz/documentos/pacto_internacional_sobre_direitos_economicos_sociais_culturais.pdf
7 Amnesty International Report 2021/2022- The State of the World’s Human Rights.
8 https://unric.org/pt/eliminar-a-pobreza/
9 https://www.cnnbrasil.com.br/business/10-mais-ricos-controlam-76-da-riqueza-global-50-mais-pobres-ficam-com-2/
10 Report /OXFAM. Inequality Kills. The unparalleled action needed to combat unprecedented inequality
11 https://www.pordata.pt/publicacoes/infografias/pobreza-235
12 https://www.gee.gov.pt/pt/indicadores-diarios/ultimos-indicadores/32334-pobreza-e-exclusao-social-eurostat
13 https://news.un.org/pt/story/2022/07/1794722
14 https://news.un.org/pt/story/2021/06/1754062
15 https://www.feantsa.org/en/about-us/faq
16 http://uis.unesco.org/en/topic/literacy
17 https://www.who.int/world-health-day/world-health-day-2019/fact-sheets/details/universal-health-coverage-(uhc)
18 https://unric.org/pt/onu-cerca-de-metade-das-mulheres-em-57-paises-nao-tem-autonomia-sob-o-seu-corpo/
19 https://news.un.org/pt/story/2021/02/1740632
20 In “Jornal Público, 6 de fevereiro de 2023”
21 https://rsf.org/en/rsf-s-2022-world-press-freedom-index-new-era-polarisation
22 https://www.amnistia.pt/tematica/tortura/
23 https://www.amnistia.pt/tematica/pena-de-morte/
24 https://www.amnistia.pt/pena-de-morte-2020/