Por Fernando Vasco
Médico e presidente da Assembleia Geral da MdM
O aumento das cesarianas nos hospitais privados foi noticiado recentemente num jornal diário1.
Sabemos que os hospitais privados, em detrimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), têm vindo a aumentar o seu peso na prestação de cuidados de saúde aos portugueses. Tal facto não nos admira, dada a incapacidade dos partidos políticos, que dizem defendê-lo, não o fazerem. Da mesma forma, não nos admira que não só os hospitais privados tenham vindo a aumentar o número de partos que realizam, como também a percentagem de cesarianas tenha vindo a aumentar em Portugal de 26,8%, em 1999, para 36,3%, em 20202, acompanhando a tendência mundial.
O que nos deixou perplexos, e que em nosso entender carece de explicação, foi o que lemos na notícia: “As duas maiores maternidades do país são privadas. E fazem muitas cesarianas”, a saber: i) em duas maternidades privadas de Lisboa, a taxa de cesarianas é de 59% e 50,2%, enquanto nas 13 maternidades dos hospitais públicos de Lisboa e Vale do Tejo é de 31,5%; ii) em 2020, a taxa de cesarianas no setor privado e social foi superior a 67%; e iii) existe uma nova indicação terapêutica para a realização de uma cesariana, que não vejo descrito em nenhum tratado de Medicina do meu tempo, que é “a cesariana à la carte” (a pedido da mulher), sendo esta “a única questão em que não se consegue concorrer com o privado”.3
Para percebermos melhor o que se passa, fizemos alguma pesquisa que resolvemos partilhar.
Partos por cesarianas no mundo
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o uso de cesariana tem vindo a crescer no mundo, sendo atualmente de 21%, e prevê-se que seja de 29% em 2030. As taxas mais altas, provavelmente, serão na Ásia Oriental (63%), América Latina e Caribe (54%), Ásia Ocidental (50%), Norte de África (48%) Sul da Europa (47%), Austrália e Nova Zelândia (45%).4
Nos países menos desenvolvidos, cerca de 8% das mulheres deram à luz por cesariana (5% na África Subsaariana), indicando uma falta preocupante de acesso a essa importante cirurgia. Estas taxas contrastam com as da América Latina e do Caribe, onde chegam aos 43% dos nascimentos. Em cinco países (República Dominicana, Brasil, Chipre, Egito e Turquia), as cesarianas já superam os partos normais.5
As causas do elevado uso de cesarianas variam amplamente entre países e dentro deles. São, entre outras, as políticas e financiamento do setor da saúde, os aspetos culturais, as perceções e práticas, as taxas de nascimentos prematuros, a qualidade dos cuidados obstétricos, o aumento da idade média das primíparas e o maior acesso a cuidados.
Algumas notas sobre o Brasil e os EUA
Nestes dois países, os serviços de saúde privados têm um peso significativo e são bons exemplos para ilustrar para onde estamos a caminhar.
O Brasil, com 52% dos partos feitos por cesarianas (OMS recomenda 15%), é o país recordista mundial desse tipo de parto. Na rede privada, a taxa sobe para 83%, chegando a mais de 90% em algumas maternidades. Podemos concluir que a intervenção deixou de ser um recurso para salvar vidas e passou, na prática, a ser regra.
Falhas profundas na regulamentação do sistema de saúde do país e uma lógica perversa na gestão de profissionais e obstetras que, por questões financeiras, acabaram por perder o hábito de fazer partos normais, são algumas das causas, agravadas principalmente pela falta de informação que cerca o assunto.6
Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), dos 287.166 partos realizados através de planos de saúde privados em 2019, 84,76% foram por cesariana, dos quais 56,71% ocorreram antes do início do trabalho de parto e 37,29% em mulheres com idade gestacional entre 37 e 38 semanas. Considera-se que o parto normal deve ocorrer a partir das 40 semanas, pelo que esta situação aumenta o risco para a criança (incapacidade de manutenção da temperatura corporal, imaturidade pulmonar e maior dificuldade de sucção do leite materno).7
Nos EUA, a percentagem de partos por cesariana tem aumentado constantemente (um em cada três partos), o que levou, em 2014, o American College of Obstetricians and Gynecologists e a Society for Maternal-Fetal Medicine a divulgaram em conjunto uma série de novas recomendações sobre boas práticas obstétricas, tentando conter este aumento.8 Em 2017, a taxa de partos por cesariana foi de 31,96%.9
Portugal está entre os 10 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com uma taxa de cesarianas mais elevada, com 32,5% dos partos, acima dos 28% da média de mais de 30 países e já acima do valor dos EUA.10
Face a estas evidências, somos levados a pensar que há uma tendência, por parte dos profissionais de saúde, para a desvalorização do parto normal, vaginal. Esta desvalorização parece influenciar fortemente a escolha das parturientes.
Sabemos que i) a taxa de cesarianas é considerada internacionalmente um indicador de qualidade dos cuidados obstétricos; ii) existe uma norma da Direção-Geral da Saúde (DGS) que orienta as boas práticas no parto - Norma nº 001/2015 de 19/01/2015 - Registo de Indicações de Cesariana, onde se explicitam as indicações clínicas precisas para a realização de uma cesariana; iii) as cesarianas, mesmo com indicação clínica, comportam riscos para a mulher11 e para a criança;12,13,14 e iv) uma cesariana agrava os custos associados ao parto (pelo menos, mais um dia de internamento por parto, em média).
Assim, entendemos que, no nosso país, há necessidade imperiosa de perceber quais os fatores que explicam a grande discrepância entre os hospitais públicos e os hospitais do setor privado e social, no que toca à percentagem de partos por cesariana. Urge tomar as medidas necessárias para proteger a saúde das mulheres, das crianças e do nosso bolso. Evidentemente, cada mulher assinou um documento a garantir o consentimento informado para a cesariana. Resta saber em que termos é que a cesariana lhe foi proposta.
Exortamos a Ordem dos Médicos a pronunciar-se sobre este tema, já que se mostra sempre pronta a exigir as boas práticas em defesa dos doentes, quando se trata de serviços públicos. Todos nós queremos perceber, com a ajuda da Ordem e do Ministério da Saúde, se as elevadas taxas de cesarianas no setor privado e social, e o aumento verificado no país, serviços públicos incluídos, configuram boas práticas.
Urge encontrar resposta para este problema de saúde pública, que o é, de facto.
Referências:
1. Jornal “Público” de 2 de dezembro
2. https://www.pordata.pt/Portugal/Cesarianas+nos+hospitais+(percentagem) -1985
3. Dr. Alberto Caldas Afonso, diretor do Centro Materno Infantil do Norte dixid in “Público de 2 dezembro”
4. https://www.paho.org/pt/noticias/16-6-2021-taxas-cesarianas-continuam-aumentando-em-meio-crescentes-desigualdades-no-acesso
5. https://www.paho.org/pt/noticias/16-6-2021-taxas-cesarianas-continuam-aumentando-em-meio-crescentes-desigualdades-no-acesso
6. https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140411_cesareas_principal_mdb_rb
7. https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-08/cesareas-respondem-por-84-dos-partos-realizados-por-planos-em-2019
8. https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140409_cesareas_eua_ac_dg
9. https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/caesarean-section-rates-2017-or-nearest-year_e45a98fc-en
10. https://www.oecd.org/health/health-systems/Health-at-a-Glance-2019-Chartset.pdf
11. https://www.cuf.pt/mais-saude/o-que-deve-saber-sobre-cesariana-pedido
12. https://portal.fiocruz.br/noticia/cesariana-sem-indicacao-pode-aumentar-risco-de-obito-na-infancia-0
13. http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/63069
14. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v30n2/pt_17.pdf