19.08.2025
O que significa, hoje, prestar ajuda humanitária?
Prestar ajuda humanitária é estar presente onde a vida está em risco. É agir quando tudo o resto falha — quando a guerra destrói hospitais, quando a fome se instala, quando o clima força milhões a fugir. É garantir o mínimo: água, cuidados de saúde, abrigo, proteção.
Mas é também muito mais do que isso. A ajuda humanitária é um compromisso ético e político com os princípios da humanidade, imparcialidade, neutralidade e independência. É recusar a indiferença. É afirmar que todas as vidas têm o mesmo valor, mesmo quando o mundo insiste em dizer o contrário.
É importante distinguir a ajuda humanitária da cooperação para o desenvolvimento. Enquanto a primeira responde a crises imediatas e agudas, a segunda atua a médio e longo prazo, promovendo mudanças estruturais nas áreas da saúde, educação, governação ou justiça social. Ambas são essenciais — mas têm tempos, objetivos e abordagens diferentes. A ajuda humanitária salva vidas; a cooperação transforma realidades. E uma não pode substituir a outra.
Ajuda humanitária ou ação humanitária?
Embora os termos “ajuda humanitária” e “ação humanitária” sejam frequentemente usados como sinónimos, é importante distinguir os seus significados. A “ajuda humanitária” refere-se ao apoio material e imediato — como alimentos, medicamentos, abrigo e cuidados de saúde — prestado em situações de emergência. Já a “ação humanitária” abrange um conceito mais amplo, que inclui a mobilização organizada de recursos humanos, técnicos e logísticos, bem como a intervenção estratégica e ética em contextos de crise.
Neste artigo, mantemos o foco na ajuda humanitária, em alinhamento com o contexto do Dia Mundial da Ajuda Humanitária, celebrado a 19 de agosto. Esta data homenageia os trabalhadores humanitários e destaca a importância da assistência prestada em situações de crise, reforçando o papel vital da ajuda humanitária na proteção da dignidade humana.
Esta distinção é essencial para compreender os limites e o alcance da ajuda humanitária, especialmente num momento em que celebramos o seu papel vital na proteção da dignidade humana.
Um sistema à beira da rutura
Apesar da sua importância vital, a ajuda humanitária está a ser sistematicamente desvalorizada e subfinanciada. Em 2024, mais de metade das necessidades humanitárias globais ficaram por responder¹. Em 2025, cortes drásticos por parte de grandes doadores, como os EUA e vários países europeus, levaram ao encerramento de programas essenciais em cenários como o Sudão, o Iémen ou o Haiti².
Este subfinanciamento crónico não é apenas um problema técnico — é um reflexo de prioridades políticas3. Enquanto os orçamentos militares aumentam, a ajuda humanitária é tratada como um luxo dispensável. E quem paga o preço são as pessoas que esperam por cuidados médicos, por alimentos, por proteção.
Além disso, o sistema continua altamente centralizado e dependente de poucos doadores, o que o torna vulnerável a choques políticos e económicos. A burocracia e a falta de mecanismos de coordenação eficazes dificultam uma resposta mais ágil e adaptada às realidades no terreno.
Discursos que desumanizam, políticas que excluem
A ajuda humanitária também está a ser atacada no plano simbólico. Crescem os discursos antidireitos que deslegitimam a ação humanitária, criminalizam migrantes e refugiados, e promovem a ideia de que ajudar é “incentivar abusos”.
Estes discursos não são inofensivos. Alimentam políticas de exclusão, bloqueiam corredores humanitários, dificultam o acesso a populações em risco e colocam em causa a neutralidade das organizações. Em alguns contextos, prestar ajuda tornou-se perigoso — e até ilegal.
E Portugal?
Portugal não enfrenta crises humanitárias de larga escala, mas tem responsabilidades. Enquanto Estado-membro da União Europeia e signatário de convenções internacionais, deve garantir que a sua política externa e de cooperação está alinhada com os princípios humanitários.
Em território nacional, a ajuda humanitária pode ser necessária em situações excecionais — como catástrofes naturais, crises sanitárias ou acolhimento de pessoas deslocadas. Mas também se manifesta em contextos menos visíveis, como o apoio a migrantes em situação irregular, o acolhimento de refugiados e requerentes de asilo, ou a resposta a desafios legislativos que podem limitar o acesso ao Serviço Nacional de Saúde.
Nestes casos, é essencial uma resposta coordenada, baseada nos direitos humanos4, livre de discriminação e construída em parceria com organizações da sociedade civil, municípios e instituições públicas.
A prestação de ajuda humanitária em Portugal é uma responsabilidade constitucional e ética de todos5 – do Estado, das instituições públicas e locais, da sociedade civil organizada e toda a comunidade -, que se concretiza no acolhimento e proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade — como migrantes, refugiados, requerentes de asilo ou vítimas de crises sociais e sanitárias. Esta atuação reflete o compromisso do país com os direitos humanos e com os princípios da solidariedade global.
Portugal também tem um papel a desempenhar no reforço do financiamento público à ação humanitária internacional6, no apoio a organizações da sociedade civil e na defesa de uma abordagem centrada na dignidade humana.
O papel das organizações: presença, escuta, compromisso
Organizações como a Médicos do Mundo não levam apenas cuidados de saúde ou medicamentos. Levam presença, escuta, compromisso. Estão onde poucos querem estar. E fazem-no com base numa ética clara: ninguém deve ser deixado para trás.
Mas estas organizações enfrentam dilemas todos os dias: como manter a neutralidade em contextos de violência extrema? Como garantir a segurança das equipas? Como continuar a ajudar quando os fundos desaparecem?
A resposta não é simples. Mas começa por reconhecer que a ajuda humanitária — enquanto expressão concreta da ação humanitária — não pode ser um gesto isolado. Tem de ser parte de uma visão mais ampla de justiça global, construída com as comunidades, sustentada por princípios e apoiada por compromissos duradouros.
O futuro da ajuda humanitária: resistir, inovar, transformar
O futuro da ajuda humanitária exige mais do que resiliência — exige transformação. Num cenário global marcado por crises prolongadas, cortes no financiamento e discursos que deslegitimam a solidariedade, é urgente repensar os modelos de atuação. A sustentabilidade da resposta humanitária - enquanto expressão concreta da ação humanitária - depende da capacidade de inovar, diversificar fontes de financiamento e reforçar o papel das organizações locais, que conhecem melhor os contextos e as necessidades das comunidades.
A tecnologia pode ser uma aliada poderosa, desde que colocada ao serviço da transparência, da coordenação e da eficácia. Ferramentas digitais, sistemas de alerta precoce e plataformas de gestão de informação podem melhorar a resposta, mas não substituem o contacto humano, a escuta e a presença no terreno.
É também fundamental envolver as comunidades afetadas como protagonistas da sua própria recuperação. A ajuda não pode ser imposta — tem de ser construída em diálogo, com respeito pelas culturas, saberes e prioridades locais. Isso implica descolonizar a ajuda, reconhecendo os desequilíbrios históricos e promovendo relações mais horizontais e justas.
Mas nenhuma destas mudanças será possível sem vontade política. A ajuda humanitária não pode continuar a depender da boa vontade de alguns doadores ou da pressão mediática. Precisa de compromissos duradouros, de políticas públicas que a reconheçam como essencial e de uma sociedade civil mobilizada para defender o direito à dignidade, mesmo nos contextos mais adversos.
A urgência de continuar
A ajuda humanitária não é perfeita. Está cheia de contradições, limitações e falhas. Mas é, ainda assim, uma das expressões mais concretas da solidariedade humana. Num tempo em que os direitos são postos em causa e a indiferença se normaliza, continuar a ajudar é um ato de resistência - e um compromisso com a dignidade de todas as pessoas
Esta responsabilidade é partilhada: cabe ao Estado, às organizações, à sociedade civil e a cada um de nós garantir que ninguém é deixado para trás.
Estamos preparados para assumi-la?
Referências:
1. Global Humanitarian Overview 2025 – OCHA
2. UN, partners unveil hyper-prioritized aid appeal amid brutal funding cuts – OCHA
3. Financial Tracking Service – UN OCHA
4. Guia de Direitos Humanos - Camões, Instituto da Cooperação e da Língua
5. Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2015 – Diário da República
6. Estudo sobre Ajuda Humanitária e de Emergência em Portugal – Plataforma Portuguesa das ONGD
