A pandemia da COVID-19 e os consequentes confinamentos levaram as populações mais vulneráveis a deixar de recorrer aos cuidados de saúde com a frequência necessária, conduzindo ao agravamento do seu estado de saúde mental, nomeadamente ao aumento de quadros de ansiedade, transtornos do humor e surtos psicóticos.

Andreia Miranda, enfermeira com especialização em saúde mental e psiquiatria, que trabalha nos projectos da Médicos do Mundo (MdM) no Porto, nomeadamente no projecto Porto Escondido, fala-nos dos impactos, dos desafios e de como a MdM continuou ao lado de quem mais precisa, num momento tão difícil, como foi o da pandemia da COVID-19. 

O Porto Escondido - Equipa de Rua visa, de forma geral, promover o acesso à prevenção, a realização de testes rápidos de rastreio de infecções por Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), Vírus da Hepatite B (VHB) e Vírus da Hepatite C (VHC) e Sífilis, e a adequada referenciação se reactivo, e garantir o acesso a programas de Redução de Riscos e Minimização de Danos (RRMD).

Como define o cenário em termos de saúde mental no que se refere à população apoiada pela MdM no Porto? Quais os principais desafios? 
Andreia Miranda (AM): A população apoiada diariamente na cidade do Porto pela equipa multidisciplinar da MdM é vulnerável e socialmente isolada, o que causa uma maior predisposição ao desenvolvimento de patologias do foro da saúde mental.
A maioria das doenças mentais e físicas são resultantes de um conjunto de fatores biológicos, psicológicos e sociais. Elas podem afectar pessoas de qualquer idade, em qualquer parte do mundo e causam sofrimento tanto à própria pessoa, como às suas famílias e comunidade onde está inserida.

Deste modo, posso dizer que no projecto onde desempenho a maior parte das minhas funções – Porto Escondido – passamos a encontrar diariamente uma população ainda mais isolada do que antes da pandemia, o que acarreta um agravamento do estado de saúde em geral e em particular da saúde mental destes indivíduos. 
Nos indivíduos consumidores de substâncias psicoactivas, é de notar o aumento do consumo destas substâncias, nomeadamente por via endovenosa (algo menos comum nos últimos anos). Alguns destes indivíduos têm também abandonado o tratamento, o que leva muitas vezes à descompensação psicopatológica.

O surgimento da pandemia e consequentes confinamentos a que toda a população foi sujeita, levou a população consumidora de substâncias, população sem-abrigo, trabalhadores do sexo e população imigrante a não recorrerem aos cuidados de saúde com a devida frequência, conduzindo ao agravamento do estado da saúde mental destes indivíduos, nomeadamente ao aumento de quadros de ansiedade, transtornos do humor e surtos psicóticos.

 

“Os diferentes grupos vulneráveis enfrentam desafios transversais (…) Em comum (…) o agravamento do isolamento social e ausência de rede de suporte social e de segurança (…), o que levou a uma maior dificuldade no acesso aos cuidados de saúde e até mesmo aos bens de primeira necessidade.”

 

Existem desafios específicos quando falamos dos diferentes grupos vulneráveis ou esses desafios são comuns?
AM: Os diferentes grupos vulneráveis enfrentam desafios transversais a todos eles, enquanto grupo, embora sejam específicos a cada utente.
Como desafios em comum, posso referir o agravamento do isolamento social e ausência de rede de suporte social e de segurança, nomeadamente familiar ou social, o que levou a uma maior dificuldade no acesso aos cuidados de saúde e até mesmo aos bens de primeira necessidade.

Na população sem-abrigo, em particular, o isolamento social aumentou ainda mais, o que dificultou o acesso a bens essenciais e alimentares, uma vez que na fase inicial da pandemia as respostas a este nível sofreram uma redução. Penso que neste momento essas dificuldades diminuíram e as repostas voltaram ao que eram antes da pandemia.

Os consumidores de substâncias psicoactivas tiveram também maior dificuldade em ter acesso a estas mesmas substâncias, tanto pela escassez, como pela falta de recursos para as adquirir, até porque com o confinamento da população geral não tiveram forma de obter recursos económicos.

Os trabalhadores do sexo também viram a sua actividade diária diminuir.
Estas alterações na vida diária dos nossos utentes deixaram-nos numa situação de maior vulnerabilidade e labilidade emocional, que pode levar ao agravamento ou surgimento de patologias mentais.

Qual tem sido a resposta disponibilizada aos utentes no Porto? Que actividades são realizadas?
AM: Apesar das consequências ditadas pelo surgimento desta pandemia, a equipa da MdM manteve as respostas que já assegurava aos seus utentes em geral. No que toca em particular ao projecto Porto Escondido, mantivemos as saídas diárias para o terreno, apenas com limitação de lotação de técnicos por veículo. 
Deste modo, continuámos a realizar troca e distribuição de material de consumo, aconselhamento, educação para a saúde, rastreios de infecções sexualmente transmissíveis (HIV, HCV, HBV e Sífilis), apoio medicamentoso, tratamento de feridas e encaminhamento para os cuidados de saúde especializados (problemas físicos e transtornos mentais).
Além das actividades anteriormente descritas, acrescentámos a triagem e despistagem de sintomas COVID-19, distribuição de material de protecção individual, nomeadamente máscaras cirúrgicas e encaminhamento de casos suspeitos.
Temos vindo a dedicar especial atenção ao estado da saúde mental dos nossos utentes, realizando os devidos encaminhamentos para os cuidados de saúde.
Posso dizer que a população seguida pela MdM na cidade do Porto manteve o acesso e seguimento necessários dos nossos cuidados de saúde e psicossociais.

 

“O isolamento social, o distanciamento físico e o uso dos equipamentos de protecção individual foram para mim os maiores desafios enquanto especialista em saúde mental.”

 

Em que medida a pandemia da COVID-19 agravou os problemas já existentes e trouxe novos desafios? 
AM: O isolamento social, o distanciamento físico e o uso dos equipamentos de protecção individual foram para mim os maiores desafios enquanto especialista em saúde mental. Com o uso das máscaras, torna-se mais difícil a comunicação e compreensão das emoções. O distanciamento físico também nos impediu, principalmente numa fase inicial, em que o medo do desconhecido era grande, de trabalhar as emoções de forma eficaz. O toque terapêutico ou um simples abraço são extremamente importantes na área da saúde mental.
Penso que neste momento, com o conhecimento que temos sobre a COVID-19, conseguimos ultrapassar as dificuldades iniciais e trabalhar melhor a saúde mental dos nossos utentes. 

É enfermeira com especialização em saúde mental e psiquiatria. Em que medida esta especialização tem influência e se espelha no trabalho que realiza?
AM: A enfermagem de saúde mental e psiquiatria têm um papel preponderante no que diz respeito ao acompanhamento da pessoa ao longo do seu ciclo vital, orientando-a para a melhoria da sua qualidade de vida, promovendo a sua saúde mental, prevenindo a doença mental e/ou auxiliando no processo de tratamento e de reabilitação.

Penso que o enfermeiro especialista em enfermagem de saúde mental e psiquiatria é detentor de todas as ferramentas necessárias para trabalhar com esta população, desde o conhecimento teórico até à sensibilidade para avaliar e actuar da forma mais eficaz, tendo como principal objectivo a promoção e melhoria da saúde mental, neste caso, tal como na generalidade.
A enfermagem de saúde mental e psiquiatria, além dos conhecimentos práticos e teóricos, pode ser encarada como uma profissão de ajuda e por muitos considerados como a arte de cuidar que permite atender a pessoa contribuindo para o seu bem-estar, para a sua saúde e para a sua qualidade de vida: “trata-se de encontrar uma pessoa no seu caminho particular de vida e de fazer caminho com ela” (Hesbeen, 2000, p.102 cit. por Fernandes, 2007).

Deste modo, a enfermagem de saúde mental e psiquiatria caracteriza-se pelo estabelecimento de uma relação terapêutica de confiança, compreensão e capacidade. Ajuda a promover, manter ou restabelecer o bem-estar dos utentes que encontramos nos nossos projectos.
É importante também referir que o enfermeiro especialista desta área é detentor de conhecimento teórico e prático que o torna capaz de detectar situações de risco mais precocemente.

Tem alguma história que queira partilhar sobre o trabalho no terreno?
AM: No decorrer da nossa intervenção no terreno, encontramos o Raúl (nome fictício), consumidor de substâncias psicoactivas (nomeadamente heroína e cocaína) e com o diagnóstico de esquizofrenia. 
O Raúl, quando começou a ser seguido pela nossa equipa, estava desmotivado e descompensado ao nível psiquiátrico; não cumpria o plano terapêutico estabelecido pela equipa multidisciplinar que o acompanhava e chegou mesmo a abandonar o programa de substituição opiácea e medicação psiquiátrica prescrita.

Todos os dias encontrávamos o Raúl nos locais de consumo da cidade do Porto, fomos persistentes e nunca desistimos dele.
O Raúl encontrou na nossa equipa o apoio emocional e social que lhe faltava para não desistir do seu tratamento. Assim, conseguimos encaminhá-lo para uma nova equipa de tratamento. Neste momento, é assíduo ao programa de substituição opiácea e aderiu ao tratamento medicamentoso prescrito. O seu estado de saúde geral teve melhorias significativas. 
Além das melhorias visíveis no seu estado de saúde física e mental, o Raúl está neste momento inscrito num curso, o que demonstra motivação para a reinserção na vida social activa.
Penso que a intervenção da equipa da Médicos do Mundo fez toda a diferença para a melhoria do estado da saúde física e mental do Raúl.

 

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