O voluntariado sempre fez parte da minha existência. Desde pequena que das mais diversas formas, a partilha, a entrega, sempre foram a regra e nunca a exceção. Ainda me lembro no passado, pelas mãos da minha mãe, irmos ajudar com as refeições dos mais desfavorecidos ou no Natal estarmos a embrulhar os presentes para dar aos meninos que por uma vida mais cruel, não foram agraciados com uma casa, uma mãe, pai ou o calor de uma família. Já mais velha, de forma mais robusta e já mais sapiente, o voluntariado sempre fez parte, em que o ato sem retorno, é o princípio basilar. Não se trata de abdicar de tempo, mas sim de o aproveitar para que outros rejubilem, para que outros sintam o calor da presença humana nas situações mais austeras e penosas, é trazer luz a quem nada vê, sem ser escuridão e abandono.

A Médicos do Mundo, tornou-se para mim, aquela instituição por quem vesti a camisola. Com ideologias e valores que me identifico em pleno, e que me tem dado as oportunidades para ir mais além no voluntariado, ser melhor pessoa e desempenhar melhor o meu papel enquanto cidadã.

Moçambique (Ndeja) e Lisboa têm sido os cenários onde posso desempenhar o papel pelo qual sempre ambicionei, ajudar de forma desinteressada para que outros vivam melhor.

Moçambique, foi a missão que impôs o mais profundo respeito e dedicação por aqueles que viram as suas vidas dilaceradas pela mãe natureza, tão implacável, provida de uma ferocidade que não poupa nada nem ninguém. 

Se por um lado estava em êxtase pela missão, pela concretização do meu mais sincero sentimento altruísta, por outro lado sentia-me continuamente assolada pela angústia de poder falhar com as pessoas que estavam à espera dos meus cuidados. Tal como já referi, a responsabilidade é avassaladora, sentir que muitos iam depender de mim, do meu saber, da minha dedicação, deixava-me angustiada. Será que estarei à altura de ajudar aquelas pessoas tal e qual como merecem? Será que serei a pessoa que eles esperam que eu seja? Uma coisa me reconfortava... eu estava verdadeiramente comprometida com a missão e com todos aqueles que passariam pelas minhas mãos! Estudei e li muito para estar à altura. Uma coisa era certa, nada nem ninguém ficaria sem resposta. Fui para Moçambique quase desprovida de bens materiais, apenas os meus apontamentos médicos na algibeira, o meu estetoscópio e pouco mais. Levei sim vontade, alegria, sentido missionário e coragem… Coragem para conseguir aguentar as lágrimas quando me deparasse com as condições de vida mais indignas, com a fome, com a injustiça, com o nada. Levei coragem para aguentar a sentença de abandono que o mundo fez questão de passar há muitos anos, àqueles que simplesmente não têm culpa de terem nascido mais a sul…

AF

É difícil descrever a sensação que me assolou ao ver crianças desnudas cheias de terra, ver essas mesmas crianças queimadas porque se abeiravam de fogueiras onde a farinha se transformavam no único alimento que dispunham durante dias a fio. Mulheres, homens com olhares perdidos, desprovidos de fé e de esperança. É impossível descrever o estado paupérrimo de um país esquecido por todos. A fome, esse conceito desconhecido por tantos, ali era real, em que um simples pão era o equivalente a um verdadeiro manjar dos deuses. Era real que ali, ninguém tem casa, ninguém tem bens, roupa ou brinquedos... apenas os despojos do primeiro mundo.

Nunca mais me vou esquecer os apelos desesperados das mães pelos seus filhos, do choro e gemidos das crianças. Nunca vou esquecer as caras de tristeza, de angústia, das caras de fome. Nunca vou esquecer o sentimento de desesperança naqueles olhares vazios de futuro.

Contudo, também nunca vou esquecer os sorrisos tímidos, a resiliência de um povo massacrado e a capacidade única de sobrevivência nas condições mais adversas. Foi uma verdadeira lição de humildade e de resistência.

Estive num campo de reassentamento, significando que os locais vivem em tendas, não tendo bens, nem sequer de primeira necessidade. Portanto as necessidades não poderiam ser as mais básicas, como um sítio para viver, alimentos, roupas… O campo que foi outrora montado para ser uma solução temporária, tornou-se permanente. Ali vão ficar, aqueles que apesar das ajudas no calor do momento do ciclone Idai, foram insuficientes para mudar o destino de tantas vidas. Muitas organizações abandonaram o local, poucos ficaram, resta-me ficar orgulhosa da Médicos do Mundo que apesar das dificuldades, lutamos diariamente para manter um posto, sabendo que a saúde não deveria ser um privilégio, mas sim um direito de qualquer ser humano.

Em Lisboa, as necessidades não são assim tão diferentes. Continua a existir fome, sede e falta de condições que dignifiquem a condição humana, contudo a forma motriz prende-se na minha convicção que independente das escolhas de uma vida, ninguém tem que enfrentar a solidão sozinho.

Conviver com histórias de vida avassaladoras dignas de verdadeiros filmes, não é tarefa fácil, tentar compreender o que está por trás de tantos comportamentos que são socialmente condenáveis, exige uma grande flexibilidade mental. Mas todos merecem! Merecem o nosso tempo, a nossa ajuda, a nossa sapiência e a nossa disponibilidade para que a dignidade nunca se perca, para que nunca se perca uma oportunidade para ganhar salubridade.

Numa sociedade egoísta, ir em auxílio dos que são ignorados, desprezados e ostracizados faz sentido. Tem que fazer! De outra forma a convivência humana deixa de fazer sentido. Tudo vale a pena pelo o abraço dado à posteri por aqueles que estiveram às portas da morte e que pela nossa persistência, vontade e luta, hoje vivem para contar a sua história. 

Em suma:

A essência do voluntariado é usar competências pessoais em prol do outro em qualquer lugar e circunstância. Se essa vontade existir, penso que temos as condições reunidas. Claro que em condições extremas, a resiliência, a resistência aos mais variados obstáculos, sejam eles de origem material ou humana poderão ajudar, mas tudo depende da vontade e motivação. A capacidade de adaptação é importante, nunca sabemos verdadeiramente o que vamos encontrar e em que condições, por isso, desistir não pode fazer parte do léxico.

Ajuda-me pensar que apesar de tantos milhões de pessoas precisarem de ajuda, e de as minhas ações serem meras gotas num vasto oceano, posso fazer a diferença na vida de alguns e isso chega-me. Este pensamento é a minha força motriz que me faz abdicar do conforto da minha casa, da minha cidade e até do meu país, abdicar da companhia de quem mais gosto.

Chega-me! Para partir, sem olhar para trás…

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