Ahmed Hallak

A Rede Internacional da Médicos do Mundo e a organização não-governamental Mehad alertam para o risco de os cortes de financiamento na Síria obrigarem os atores humanitários a escolher entre intervenções que salvam vidas e o encerramento de programas de saúde essenciais. 

Um número sem precedentes de 16,7 milhões de pessoas na Síria precisam de assistência este ano, o que representa mais de 75% da população. Como os atores humanitários são praticamente os únicos a prestar cuidados de saúde, a redução do financiamento significa que o acesso a cuidados de saúde será severamente limitado. A saúde mental e a saúde sexual e reprodutiva estão particularmente em risco.

 

Défice de financiamento 

Este ano, o apoio financeiro prometido pela comunidade internacional durante a 8ª Conferência de Bruxelas ficou muito aquém, fixando-se em apenas 18% do financiamento necessário para o Plano de Resposta Humanitária (PRH) para a Síria. Em consequência, as organizações humanitárias vão ser obrigadas a suspender operações que salvam vidas. 

De acordo com o Gabinete de Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA, na sigla em inglês), apenas 16,3% das necessidades de saúde descritas no PRH para a Síria tinham sido financiadas até ao final do primeiro semestre de 2024. 

A situação no terreno continua a ser muito difícil, com a recente escalada da violência, fragilidade das infraestruturas e necessidades humanitárias crescentes.  O OCHA estimou recentemente que cerca de 160 infraestruturas de saúde, incluindo 46 hospitais, terão de suspender as suas atividades, se não existir financiamento adicional. Até agosto de 2024, cerca de 200 das 350 infraestruturas de saúde no noroeste da Síria serão afetadas. 

 

Impacto crítico nos serviços de saúde 

O défice de financiamento está a obrigar os intervenientes humanitários a dar prioridade às intervenções que salvam vidas, em detrimento de outros programas de ajuda essenciais, em áreas como a saúde mental e apoio psicossocial (SMAP) e a saúde sexual e reprodutiva (SSR). 

No noroeste da Síria, não existe um prestador de serviços governamental alternativo ou um organismo que se responsabilize pelos serviços de saúde. A região encontra-se isolada do resto da Síria e totalmente dependente das organizações humanitárias para a prestação de cuidados de saúde. Assim, quando uma infraestrutura encerra devido a cortes no financiamento, não existe um organismo governamental provisório para manter as operações, deixando a comunidade sem serviços médicos essenciais. 

Um estudo realizado pela Mehad, em agosto de 2023, numa população de 1.537 pessoas no noroeste da Síria, identificou elevadas necessidades de SMAP, com taxas de suicídio particularmente prevalentes no distrito de Jisr al-Shughur (22,91% dos participantes). 

Nos distritos de Afrin, Harim e Idlib, onde uma das equipas da Médicos do Mundo (MdM) opera, a prestação de cuidados de saúde foi gravemente afetada. Segundo um relatório do OCHA, atualizado em maio de 2024, mais de 100 infraestruturas de saúde, incluindo 32 hospitais, já tinham interrompido os seus serviços, no final de junho. 

O setor da saúde manifestou a preocupação de que, sem financiamento adequado, até 50% das restantes infraestruturas de saúde operacionais no noroeste da Síria encerre total ou parcialmente até dezembro de 2024.

 

SíriaBakrAlkasem para a MdM Turquia

 

O mais recente relatório de avaliação das necessidades multissetoriais da MdM Turquia revela que 80% dos membros da comunidade identificaram a MdM como o seu principal prestador de cuidados de saúde, enquanto apenas 3% consideram que as autoridades de saúde locais satisfazem as suas necessidades de saúde. Estes dados sublinham a importância crucial do financiamento dos atores não-governamentais. 

 

No nordeste da Síria, outra região onde a MdM opera, muitas unidades de saúde apresentam uma grande dependência do apoio das organizações não-governamentais, com uma cobertura das autoridades de saúde locais de apenas 37,8%. Sem este apoio, estes centros não têm os recursos e profissionais necessários. 

Em 2023, de acordo com o Panorama Global Humanitário (Global Humanitarian Overview), quase uma em cada cinco pessoas não tinham acesso a cuidados de saúde essenciais. Há ainda uma grave escassez de medicamentos vitais, cujos preços aumentaram consideravelmente nos últimos dois anos. Assim, uma grande parte da população não tem acesso a cuidados de saúde essenciais, o que agrava a necessidade urgente de aumentar o financiamento. 

 

“A MdM Turquia é o principal prestador de saúde para a maioria da comunidade local. Sem financiamento suficiente, arriscamo-nos a não conseguir satisfazer as necessidades, deixando muitas pessoas sem acesso a cuidados médicos essenciais. É fundamental que a comunidade internacional reconheça a urgência e reforce o seu apoio.”

Dr. Mohammad Faris, diretor clínico dos programas da MdM Turquia

 

“Após a especial atenção na sequência do terramoto de fevereiro de 2023, os fundos institucionais rapidamente se esgotaram para o noroeste, apesar da situação humanitária continuar a ser extremamente preocupante. Sem um afluxo rápido de fundos de doadores internacionais, em breve não seremos capazes de satisfazer estas necessidades vitais."

Osamah Alhoussin, diretor de programas para o noroeste da Síria. 
 

Apelo à ação

A MdM e a Mehad apelam a aumento urgente do apoio dos doadores para satisfazer as necessidades de saúde e garantir que todos possam viver com dignidade. Todo ser humano tem direito ao mais padrão mais elevado de cuidados de saúde física e mental, através do acesso universal a serviços de saúde de qualidade.

A comunidade internacional deve atuar agora para evitar novos encerramentos de infraestruturas e garantir que o povo sírio continue a ter acesso a serviços de saúde essenciais. 

 

Sobre o trabalho da Médicos do Mundo na Síria

A MdM iniciou as suas atividades na Síria em 2008, através da disponibilização de serviços de cuidados de saúde primários na província de Aleppo, em parceria com o Crescente Vermelho Árabe Sírio (CVAS), antes do início do conflito. Com o início das hostilidades, a Médicos do Mundo adaptou a sua resposta para melhor responder às necessidades da população síria.

Durante os últimos 11 anos do conflito sírio, a MdM desenvolveu diversas atividades médico-humanitárias para ajudar os que sofrem com a guerra. A complexidade do conflito – com numerosos atores, acesso limitado, ataques diretos a profissionais e infraestruturas de saúde, e enormes necessidades - deu origem a uma resposta igualmente complexa. A MdM implementa atividades diretamente ou através de parcerias com intervenientes locais na Síria e em países vizinhos com refugiados sírios.

 

Sobre a Mehad

A Mehad é uma organização não-governamental francesa dedicada à saúde e à solidariedade internacional, criada em 2011 como resultado da determinação de um grupo de médicos em responder à necessidade urgente de prestar cuidados de saúde às populações afetadas pela guerra na Síria e nos países vizinhos. Atualmente, a Mehad gere cerca de 40 unidades de saúde no país, enfrentando o desafio permanente de garantir o acesso a cuidados de saúde num cenário de devastação causado pela guerra, desde o início do conflito. 

A principal missão da Mehad é envolver-se de forma construtiva com os atores locais, para garantir cuidados de elevada qualidade e o desenvolvimento social a longo prazo para as populações em situação de vulnerabilidade. Com um conhecimento profundo das necessidades da população e relações de parceria de longa data, a organização desenvolveu uma experiência única na abordagem de questões de emergência locais, de saúde e de desenvolvimento.