Os profissionais de saúde são o elemento central de suporte do SNS
Consideramos que profissionais motivados, cujo valor e empenho seja reconhecido pelas administrações das ULS e pelo SNS, constituem o elemento fulcral do bom funcionamento do SNS. Sem eles não há recuperação possível. Há quem fale em “salário emocional” enquanto elemento motivador extra. Contudo, este só é eficaz se tiver por base remunerações justas e boas condições de trabalho. O salário emocional não paga a renda da casa, mas leva os profissionais a quererem manter-se na organização (Tese 4).
A sangria de profissionais de saúde do SNS para o setor privado e para a imigração é uma realidade incontestável. Em nosso entender há, pelo menos, duas medidas que urge tomar. Uma primeira, óbvia, passa por melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde, nomeadamente para facilitar o recrutamento, conforme proposta da OCDE.8 Uma segunda passa por legislar no sentido de que os profissionais de saúde formados em estabelecimentos públicos de ensino, devem, como forma de retribuir aquilo que a sociedade investiu na sua formação, exercer a sua profissão no SNS durante um tempo determinado, e, caso o não façam, deverão ressarcir o Estado. Esta é uma medida que merece discussão, mas, em nosso entender, é socialmente injusta.
Consideramos a questão dos profissionais crítica. Não podemos esperar muito de um SNS que apesar de ter um número de médicos por habitante razoável9, não os consegue fixar no SNS. A razão mais óbvia prende-se com o facto de, entre 2010 e 2020, o salário dos médicos de família e especialistas, em termos reais, diminuiu 1,8 e 1,6% (Na OCDE isto só aconteceu em quatro países e Portugal apresentou a maior baixa).10 Esta quebra ocorreu fundamentalmente entre 2010 e 2012, mas em 2020 os salários ainda estavam abaixo dos valores de 2010.
Considerando o caso dos enfermeiros, existem 7,3 por mil habitantes, sendo a média europeia de 8,3. Contudo, o ratio enfermeiro por médico é de 1,3 quando a média europeia é de 2,2, e em termos salariais, a remuneração dos enfermeiros hospitalares, ajustada para o custo de vida é de 21,4 mil euros, quando a média europeia é de 35,3 mil euros, e quando comparado com o salário médio o ratio é de 1.0, sendo a média da UE de 1,211.
Participação da população
A participação em saúde da população (Tese 5) é preconizada na Carta para a Participação Pública em Saúde12. Entendemos que a Carta deve ser estudada e implementada pelos agentes locais, nomeadamente pelos próprios serviços de saúde, incluindo o Ministério da Saúde.
Sendo esta participação habitualmente prevista em termos consultivos, deveria, no nosso entender, ocorrer também em termos executivos. Isso já se verificou nas Comissões Integradoras dos Serviços de Saúde Locais (CISSL), anos 70, em que o órgão que presidia à integração e gestão dos serviços locais (hospital concelhio, postos dos serviços médico-sociais e centro de saúde) tinha um elemento indicado pela Câmara Municipal. Mesmo com muitas dificuldades, pois o elemento da comunidade era olhado como um corpo estranho, não se pode dizer que tenha sido uma experiência falhada13.
Seja qual for o modelo de que se reveste esta participação, há questões a que temos de estar atentos. A experiência mostra que os órgãos criados para permitir esta participação, integram numerosos elementos, o que torna difícil não só a escolha, mas também o funcionamento do órgão. Também é importante que haja um elemento motivador que faça o órgão funcionar, que dê um propósito ao seu funcionamento, e, questão fundamental, que as decisões tomadas redundem numa prática que obtenha resultados.
Não podemos deixar que a participação da população seja encarada como algo que tem pouco valor e, se queremos que seja efetiva, há que lhe conferir seriedade. Cabe, pois, aos serviços de saúde insistirem nesta participação e dinamizá-la. Da nossa experiência, esta participação traz ideias novas para a discussão e constitui um importante instrumento de literacia em saúde, de prevenção de conflitos e de aproximação dos serviços à comunidade que servem. Um processo desta natureza, será fundamental para que as comunidades se “apropriem” dos serviços de saúde, e vice-versa, i. e., os serviços de saúde são um elemento das comunidades e não lhes são exteriores.
Governação de Saúde
A Governação de Saúde (Tese 7) constitui uma outra vertente a levar em conta. Tal como é enunciado na Tese, concordamos que “a governação do SNS deve combinar dois polos: global e local. Cada um deles tem âmbito, alcance e funções distintas, mas complementares. Ambos servem os mesmos propósitos: conhecer e compreender as necessidades e desafios em saúde; compreender comportamentos e aspirações dos atores sociais; enquadrá-los e direcioná-los para alcançar os resultados desejados, através de um conjunto de instrumentos, uns notórios, outros subtis, aplicados combinadamente, para além das normas e das ações de comando-e-controlo.”.
Num mundo em rápida mudança, as lideranças, aos diversos níveis do SNS, têm de estar muito atentas às pessoas (população e profissionais). Estas lideranças são fundamentais para promoverem as mudanças no SNS. A chamada “liderança compassiva” proposta por Michael West, e que está a ser desenvolvida no SNS inglês fornece algumas pistas para os “novos” lideres: “liderar com cuidado, envolver o fator tempo, partilhar a visão, influenciar para os resultados, avaliar a informação, inspirar objetivos compartilhados, ligar o nosso serviço em rede, responsabilizar, desenvolver capacidades”.14. Nada do que é dito é novo, mas coloca todo o processo de liderança numa nova perspetiva (liderar com cuidado), que é a preocupação com os outros – profissionais e utentes.
Investimento e financiamento
Quanto às questões levantadas pelo investimento e financiamento da Saúde (Tese 9), entendo que têm de ser equacionadas juntamente com as questões levantadas na Tese 10 - Bem comum, conflito de interesses e regulação sistémica.
Concordamos que “o modelo de financiamento e a orçamentação devem basear-se nos resultados de saúde e bem-estar a alcançar. Devem influenciar e promover a integração de cuidados e evitar modos de pagamento que induzam multiplicação de cuidados desnecessários, redundantes ou inadequados.” (Tese 9). Apesar de indicadores de saúde e bem estar só serem possíveis obter a médio e longo prazo , há que pensar num conjunto de indicadores intermédios, de processo, e que irão conduzir a ganhos de saúde.
Considerando os antecedentes, entendemos que o Ministério da Saúde (MS) não é propriedade do Ministério das Finanças. Defendemos que uma vez consensualizadas as verbas do Orçamento Geral do Estado para o MS, deve este ter a responsabilidade total da gestão das verbas atribuídas. O mesmo deverá ocorrer entre o MS e todas as estruturas do SNS que tenham autonomia administrativa e financeira. A realização material e financeira prevista nos orçamentos deve ser regularmente avaliada, e deverá ter em conta as necessidades de saúde da população, de acordo com o seu perfil de saúde, colocando o utente no centro do sistema.
A quebra desta regra, configura incapacidade para gerir ou mesmo má gestão e devem ser pedidas responsabilidades às Administrações e retiradas as devidas consequências do que for apurado. A gestão dos dinheiros públicos, do nosso dinheiro, tem de ser rigorosíssima. É isso que credibiliza as instituições.
Visão estratégica
Na Parte I falámos de como vemos os atores do setor público, privado e social ligados à saúde. Na verdade, se queremos defender o SNS temos de ter uma visão estratégica para o desenvolvimento de cada um destes setores (Tese 10).
Em termos de financiamento e orçamento há questões que urge encarar com frontalidade, mas outros, que não nós, terão mais competência para aconselhar nestas matérias. Contudo defendemos um princípio básico na elaboração de orçamentos - O dinheiro segue o doente e o perfil de saúde/doença das comunidades, que consideramos o principal racional na distribuição das dotações financeiras.
Nos aspetos atrás referidos há questões que urge encarar com frontalidade. Sabemos que as despesas com a saúde têm aumentado por via do envelhecimento da população, com doentes polimedicados para doenças crónicas, a que se juntam as novas tecnologias, os medicamentos de última geração, os transplantes, o tratamento do cancro (terapias monoclonais), terapia por células estaminais, entre outras. Todo este aumento da despesa coloca graves problemas aos sistemas de saúde, sejam eles quais forem, sobrecarregam os orçamentos familiares à custa dos pagamentos diretos, pondo em causa o direito à saúde pensado em termos de cobertura universal.
Em 2019 Portugal gastou 2 314 EUR per capita em saúde (ajustados em função das diferenças no poder de compra), ou seja, mais de um terço abaixo da média da UE de 3 523 EUR (Figura 2).15 Em 2019, as despesas de saúde em percentagem do PIB foram de 9,5 % — também inferiores à média da UE de 9,9%.
Em 2020 a despesa per capita em Portugal foi de 2331 euros, enquanto a média europeia foi de 3159 euros. Também o crescimento da despesa com a saúde em Portugal foi de 3,2% e de 2,5% nos períodos 2013-2019 e 2019-2020 respetivamente, enquanto a UE a 26 cresceu 3 e 5.5% nos mesmos períodos.
Figura 2. Em Portugal, as despesas de saúde per capita e em percentagem do PIB continuam abaixo da média da UE
Um estudo recente16 refere que “as despesas de saúde aumentaram significativamente de 2020 para 2021 até um total de 23,7 mil milhões de euros. A parcela que mais subiu foi a que é paga diretamente pelos utentes e famílias portuguesas: aumentou 14,7% para quase 6,8 mil milhões de euros. Aquela suportada pelo Estado subiu 11% para 15,6 mil milhões de euros”.
Para enfrentar estes aumentos, não há soluções mágicas sendo necessário, por exemplo, definir critérios clínicos rigorosos, mas também socialmente justos de acesso a todas as terapias, nomeadamente às que referimos. O uso destes critérios implica, mais uma vez, a informação clara do público, sobretudo quando critérios assentes em prognósticos de sobrevida estão em causa.
Também uma maior acessibilidade ao SNS poderá também ter efeitos positivos nas despesas das famílias, já que diminui a necessidade de recorrer a privados.
Há também que valorizar os contratos feitos com organizações do setor social e privados sem fins lucrativos. É reconhecido que os custos com os cuidados prestados por estas entidades são menores, quando comparados com os cuidados que prestam, quer os serviços públicos, quer os privados com fins lucrativos, para além de serem de muito maior proximidade.
Sendo juízes em causa própria, entendemos que é importante mudar o paradigma do financiamento das organizações privadas sem fins lucrativos. É paradoxal financiar estas entidades através de projetos, que por definição têm um limite temporal, quando dão resposta a necessidades que se mantêm constantes na sociedade.
Como referimos no início, defender o SNS requer firmeza e clareza em relação a valores e princípios que o norteiam. Não será tarefa fácil e haverá momentos de desânimo. Lembremo-nos então do poeta “Mesmo na noite mais triste...há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”.17
Notas:
8 Estudos Económicos da OCDE sobre Portugal – Resumo. Dezembro de 2021
9 Os 5,5 med/hab, o segundo maior valor entre os países da OCDE, parece estar inflacionado em cerca de 30%. Se assim for estaremos na média da UE a 27, que é de 4.0. in OCDE: Health at a Glance 2022, pp. 179
10 OCDE: Health at a Glance 2022, pp. 180.
11 OCDE: Health at a Glance 2022, pp. 184 a 187.
12 Aprovada como anexo I, à Lei n.º 108/2019, de 9 de setembro
13 Comissão Integradora dos Serviços de Saúde Locais. Anos 70.
14 Quality, Service Improvement and Redesign Tools: Healthcare leadership model.
15 OECD; European Observatory for Health Systems and Policies; Estado de Saúde na União Europeia. Portugal. Perfil de saúde do País 2021. Pp. 10
17 In “Trova do Vento que Passa” de Manuel Alegre.