Por Ernesto Carneiro
Membro da Direção da Médicos do Mundo
Há mais de meio século que alguns cientistas e Organizações Não-Governamentais (ONG) têm vindo a alertar que a atividade humana, baseada em modelos de desenvolvimento económico, e a organização da sociedade, assente no uso intensivo de combustíveis fósseis e no esbulho dos recursos naturais nas suas atividades industriais, sistemas de transporte e práticas agrícolas, estavam a provocar alterações trágicas no ecossistema global. No caso particular da emissão de gases com efeito de estufa, o alerta incidiu no seu contributo para as alterações no clima e como estas estavam a contribuir para a ocorrência de fenómenos extremos, com maior frequência e intensidade, que diretamente atingem o ecossistema global, do qual a espécie humana faz parte.
No que se refere às alterações climáticas, numa análise macroescala, constata-se a ocorrência de secas extremas, aumento de temperatura, degelo das calotes nos polos ou zonas geladas, chuvadas muito intensas, erosão da linha de costa, inundação das zonas ribeirinhas, tempestades, ondas de calor ou ocorrência de tornados e de outros fenómenos atmosféricos cada vez mais violentos.
De forma muito objetiva, constata-se que se têm vindo a verificar múltiplas ocorrências, com perda de vidas humanas e impactos sociais perturbantes, com custos que ascendem a muitos milhares de milhões de euros de prejuízos, por perda de culturas, património edificado, destruição de infraestruturas, erosão costeira ou alagamento de zonas ribeirinhas. Estes episódios tendem a verificar-se cada vez com maior frequência e intensidade.
A escassez de água e a desertificação, bem como a inundação de zonas mais vulneráveis, que nalguns pontos do globo já se verificam, mas que tendencialmente se irão agravar, levarão à migração de largas massas humanas, com o risco de conflitos e guerras. Segundo dados da Food and Agriculture Organization (FAO), em 2050, 3,5 mil milhões de pessoas poderão sofrer de insegurança alimentar, 5,4 milhões viverão, já em 2040, em países onde a água será um recurso cada vez mais escasso, e mais de mil milhões de pessoas fugirão de países ecologicamente destruídos (FAO, 2022). Estes fenómenos de macroescala decorrem em espaços temporais de algumas dezenas de anos, mas têm um efeito cumulativo, que potenciarão as consequências, ou seja, os fenómenos extremos que estamos a assistir, decorrem dos muitos erros que há muito a espécie humana tem vindo a gerar.
Os fenómenos de escala temporal mais reduzida permitem a cada um de nós percecioná-los de forma mais evidente. São múltiplos e variados, sendo que, no presente artigo, centramo-nos nos seus efeitos na saúde.
De facto, as alterações climáticas têm efeitos diretos sobre a saúde dos seres vivos, sendo que a perda da biodiversidade, de acordo com um relatório da Plataforma Intergovernamental Científica e Política para a Biodiversidade e os Ecossistemas - encontro realizado em Paris sob a égide da Organização das Nações Unidas (ONU), que contou com a presença de cerca de 400 dos maiores especialistas mundiais1 -, estima-se que cerca de um milhão de todas as espécies do planeta enfrentam a extinção, muitas delas dentro de poucas décadas.
Um dos fenómenos que mais facilmente associamos às alterações climáticas, é o aumento da temperatura, com ela a seca, a ocorrência de fogos devastadores, com alteração na qualidade do ar que respiramos, da água que ingerimos, na cadeia alimentar e alimentos, e na perda de qualidade de vida das populações mais vulneráveis. Estes aspetos são determinantes na saúde humana.
O Havard Global Health Institute2 tem vindo a desenvolver estudos e pesquisas, conducentes a um melhor entendimento de como as alterações climáticas estão a afetar ou irão afetar a nossa saúde no futuro. A complexidade dos fatores em jogo, a sua inter-relação, causas e consequências implicam uma abordagem multidimensional e interdisciplinar, no sentido de procurar identificar a variedade dos fenómenos, as suas causas e consequências, assim como as soluções possíveis, à luz do melhor conhecimento científico e social existente.
Conforme se referiu, há fenómenos a que quase diariamente assistimos ao vivo ou por via da informação gerada pela comunicação social, que, sem se pretender ser exaustivo, podemos facilmente identificar.
Os incêndios florestais têm efeitos sobre a qualidade do ar, afetando principalmente crianças, idosos, pessoas com doenças cardiovasculares e respiratórias, bem como todos aqueles, que, no combate aos incêndios, estão mais expostos ao calor intenso, ao ar carregado de partículas e micro partículas, que se alojam no sistema respiratório, a par do ar com baixa concentração de O₂ e elevadas taxas de CO₂ e outros gases nocivos. Consequentemente, há o risco de contraírem processos inflamatórios e infeções pulmonares ou no sistema respiratório, que podem provocar a morte.
A poluição atmosférica, com elevadas concentrações de gases nocivos, contribui de forma similar para a perda de qualidade de vida e tem efeitos negativos sobre a saúde das populações, atingindo sobretudo aqueles que estão mais vulneráveis, como idosos, crianças, pessoas com doenças respiratórias e cardíacas, que não só agravam as patologias já existentes, como também provocam o surgimento de novas situações problemáticas.
As ondas de calor, cada vez mais frequentes, mesmo em países com latitudes mais elevadas, afetam de forma muito expressiva as populações, e, uma vez mais as populações mais vulneráveis. Idosos, crianças, pessoas com doenças crónicas e deficiências, bem como mulheres grávidas são as principais vítimas, muitas das vezes de forma fatal.
Mesmo as pessoas saudáveis, quando expostas a ondas de calor, sentem-se fortemente condicionados no seu desempenho e rendimento nas atividades que praticam, sejam trabalhadores ao ar livre, desportistas ou estudantes. As ondas de calor podem também interferir em períodos de pausa ou descanso, uma vez que afetam o eficaz descanso e a qualidade do sono.
De referir também que, nas latitudes mais baixas (trópicos), muitas das zonas já ameaçadas pela desertificação, mas onde o clima é mais quente, a escassez de água, a água contaminada por micro-organismos ou insetos, ou outros vetores, aumentam de forma muito significativa a proliferação de doenças, como a malária e a dengue, que por si só são responsáveis por milhares de mortos.
As alterações climáticas, em particular nas zonas geograficamente mais expostas, contribuem de forma expressiva para a perda de colheitas, escassez de água e sua perda de qualidade, com efeitos devastadores na saúde humana, sendo responsáveis pelo surgimento de organismos que podem causar intoxicações alimentares e a contaminação microbiana da água.
Importa ainda referir que as alterações climáticas têm vindo a potenciar a ocorrência de chuvadas muito intensas, concentradas no espaço e no tempo, que provocam inundações que destroem culturas, habitações, infraestruturas (pontes, estradas, redes de águas) e geram epidemias e múltiplas doenças, ferimentos e demais patologias entre as populações atingidas.
Estes são apenas alguns dos riscos para a saúde ligados às alterações climáticas e ao aquecimento global. Eles são extensos e exigem esforços sociais e individuais cada vez maiores para os minimizar.
Notas:
1“Perda de biodiversidade “é tão grave como as alterações climáticas”, DN
2 https://globalhealth.harvard.edu/wp-content/uploads/2023/02/HGHI