CASO
SOBRE O AMBIENTE “TÓXICO” QUE TEM ENVOLVIDO POLÍTICOS, MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, ALGUNS TÉCNICOS, E A SOCIEDADE EM GERAL.

Carta Aberta

Porto, 11 de Outubro de 2019

A Associação CASO tem por missão defender os interesses das Pessoas que Usam Substâncias Psicoativas (SPA’s), particularmente as que se encontram em momentos de maior vulnerabilidade e fragilidade, por isso, tem sido com enorme revolta, indignação e tristeza, que assistimos ao regresso de narrativas puritanas e punitivas que vingaram sem sucesso nenhum, no século XX, e que, como disse Kofi Annan quando membro da Comissão Global sobre Política de Drogas, fizeram mais mal do que bem.

Este sentimento de tristeza e revolta é ainda mais intenso quando estas narrativas surgem no país que, dando um bom exemplo ao Mundo, descriminalizou a aquisição, a posse e o uso de qualquer substância psicoativa para uso pessoal, mudando o foco do crime para a saúde, assente numa Estratégia Nacional construída de forma exemplar e, ainda hoje, um documento de referência, e, cada vez mais estudado e visitado por outros países que, reconhecendo o humanismo, pragmatismo, eficácia e eficiência, procuram melhores soluções para o progresso na política de drogas nos seus países.

Assim, e, tendo em conta que nos últimos meses temos assistido a um aumento preocupante da linguagem “tóxica” na abordagem ao fenómeno da droga e do seu uso, queremos relembrar que:

Rotular e catalogar as pessoas que usam SPA’s, reduzindo realidades complexas na vã procura de as encaixar num Mundo Idealizado, não funciona.

“… o flagelo…”, “o inferno…”, “carregados de doenças…”, “toxicodependente”, “lixo tóxico” … as pessoas que usam drogas devem ser “vigiadas, … porque transmitem VIH…”, todos estes rótulos e sobre-simplificações remetem-nos para abordagens punitivas, repressivas e moralistas, que comprovadamente têm feito mais mal do que bem. Estes discursos, particularmente porque afectam mais os mais vulneráveis, são inaceitáveis com tudo o que se sabe hoje e depois de tudo o que vivemos “na pele”, no passado.

Diz E. Goffman no seu livro Estigma, de 1980, que, quando catalogamos as pessoas desta maneira e por demasiado tempo, elas próprias começam-se a descrever e a perceber assim. Por isto, mostrar uma Pessoa como apenas uma parte de si, como “o drogado”, “o Junkie”, “o toxicodependente”, nunca falar dos poetas, escritores, do jazz, de todas as outras partes das vidas das Pessoas que Usam SPA’s, é insistir num erro que manipula e constrói o modo como olhamos negativamente alguns grupos e algumas pessoas.

Alguns meios de comunicação social, políticos e mesmo alguns técnicos que trabalham com pessoas que usam SPA’s, em circunstâncias particularmente vulneráveis, insistem em espalhar desinformação e ignorância, fazendo uso de “manobras” que, mais não fazem do que disseminar “alarme social” e “pânico moral”, processo que Stanley Cohen, já em 1972, tão bem descreve como o que acontece quando os media “definem algo ou alguém como uma ameaça à sociedade, aos seus valores e interesses”, disseminando um “sentimento de medo sobre um número grande de pessoas, de que algo de maléfico, afecta o bem-estar da sociedade…”. Estas “manobras” deveriam ser alvo de sanção pois atacam os mais frágeis nos seus direitos mais fundamentais.

Desta forma, acicatando e instigando as emoções mais básicas como o medo e a insegurança, manipula-se a percepção e as representações sociais negativas, que foram sendo associadas, ao longo dos tempos, às Pessoas que usam SPA’s, e, assim, é-nos apenas permitido ver uma parte da vida destas Pessoas, mas, que é usada para as definir como ser humano, levando a sociedade, os decisores e mesmo alguns profissionais a preferir relacionar-se com a caricatura e menos com a Pessoa real.

Regressar às ideias da “guerra às drogas”, que mais não é do que um regresso a uma guerra às Pessoas que Usam SPA’s ilícitas, às suas famílias e amigos, e, até aos profissionais que trabalham de forma séria nesta área, é colocar o debate ao nível mais básico e emotivo, e não, ao nível esclarecido e esclarecedor, e mais informado que todos mereceríamos.

São muitas as entidades que convergem na ideia de que a promoção da saúde passa pela promoção da qualidade de vida das pessoas e não pelo uso “tóxico” de rótulos que diminuem pessoas que já estão fragilizadas, e, muito menos, pelo reforço securitário que agrave as condições de vida de quem se encontra já em situações de vulnerabilidade.

Não podemos continuar a ignorar os factos, a ciência e os direitos humanos mais fundamentais, deitando fora anos de experiência, questionando princípios fundamentais, civilizacionais, como a dignidade do ser-humano, para “atacar” aqueles que menos se podem defender, em troca, talvez, de sondagens, votos e audiências.

Assim, apelamos aos que têm responsabilidades públicas, aos que têm influência neste espaço público, e aos que trabalham na área das “drogas” que:

- Tratem as Pessoas que Usam Substâncias Psicoativas com dignidade, respeito e compaixão e evitem qualquer ação preconceituosa, estigmatizante e discriminatória seja no discurso ou nas práticas.

- Procurem, através da empatia, imaginar as dificuldades de quem está em momentos de grande vulnerabilidade, e, desta forma concentrar esforços para responder às reais necessidades destas pessoas em vez de usarem a caricatura destas pessoas para outros fins.

- Procurem a melhor informação e as melhores práticas, nomeadamente através de um verdadeiro diálogo estruturado e trabalho articulado com a Sociedade Civil, antes de agirem.

- Depois disto, e, em conjunto, que se procure um futuro modelo mais congruente e consolidado para que as repostas reais às necessidades reais sejam criadas.

Antes de finalizarmos este apelo para que se acabe com o ambiente “tóxico” e “bélico” que se tem vivido, gostaríamos, de salientar os esforços dos muitos e bons que têm mantido viva a esperança de um modelo Português realmente real. Um que não pareça uma coisa “lá fora” e outra “cá dentro”. Como o gato da experiência do físico austríaco Erwin Schrödinger, vivo e morto ao mesmo tempo.

PS – deixamos o link para a declaração da Redução de Danos Internacional (HRI) sobre a recente proposta do presidente da Câmara Municipal do porto sobre a re-criminalização do uso no espaço público: https://www.hri.global/contents/1958

 

A – Carta aberta proposta pela CASO tendo como redactores:

Rui Coimbra, Rui Salvador e Sérgio Rodrigues.

B – Entidades que subscrevem esta carta aberta:

  1. APDES
  2. Centro Social de Paramos
  3. CRESCER
  4. Equipa de Rua "Adições"
  5. Externato de Santa Clara
  6. GAT
  7. InPulsar
  8. Kosmicare
  9. Médicos do Mundo
  10. R3 - Riscos Reduzidos em Rede
  11. Saber Compreender

C – Pessoas que subscrevem esta carta aberta:

  1. Abílio Meneses - Técnico Superior de Serviço Social
  2. Adriana Curado - Psicóloga e Investigadora
  3. Alexandra Guimarães - Psicóloga
  4. Alina Santos - Psicóloga
  5. Ângela Leite - Psicóloga
  6. Bruno Quina - Psicólogo
  7. Catarina Costa - Psicóloga
  8. Cátia Bragança - Psicóloga Clínica
  9. Cátia Vieira - Assistente Social
  10. Christian Georgescu - Par e Presidente da Saber Compreender
  11. Cristiana Pires - Psicóloga
  12. Diana Gautier - Assistente Social
  13. Dora Filipa Matos - Técnica Psicossocial
  14. Elisabete Ferreira - Contabilista
  15. Emanuel Pestana - Assistente Social
  16. Emídio Abrantes - Coordenador de CRI-Aveiro
  17. Emília Piermartini - Estudante de Antropologia
  18. Filipe Maia - Psicólogo
  19. Filipa Gonçalves – Psicóloga
  20. Irene Teresa - Psicóloga
  21. Isabel Maciel -
  22. Joana Canêdo - Ciências Políticas
  23. Joana Pereira - Psicóloga
  24. Joana Sanches - Enfermeira
  25. Joana Tavares - Directora dos projectos Lisboa Sul da MdM
  26. Joana Vilares - Assistente Social
  27. João Florêncio - Professor Universitário
  28. João Santa Maria - Par Coordenador do Drop-in In-Mouraria/GAT
  29. José Queiroz - Director Executivo da APDES
  30. José Ribeiro - Director do Externato de Santa Clara
  31. Kateryna Makeyeva - Criminóloga
  32. Leonor Castro Lemos - Psicóloga
  33. Leonor Brito – Psicóloga
  34. Lígia Parodi - Psicóloga
  35. Liliana Pinto - Socióloga
  36. Luís Fernandes - Professor e investigador na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
  37. Laura Silva -assistente social
  38. Mara Silva, Investigadora científica.
  39. Maria da Purificação Monteiro Augusto dos Anjos - Psicóloga
  40. Maria José Pereira - Enfermeira
  41. Marília Costa - Técnica Superior de Educação Social
  42. Marta Borges - Assistente Social
  43. Marta Pinto - Docente e investigadora na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
  44. Manuela Moreira -assistente social
  45. Nuno Lourinho - Enfermeiro
  46. Nuno Rechena - Psicólogo
  47. Paula Meireles - Investigadora ISPUP
  48. Paulo Anjos - Técnico Superior de Serviço Social
  49. Pedro DC Oliveira - Psicólogo
  50. Raquel Rebelo - Técnica psicossocial e coordenadora da MdM Norte
  51. Ricardo Fuertes - Psicólogo
  52. Rita Aires - Psicóloga
  53. Rita Lopes - CRESCER
  54. Rui Lopes -técnico Psicossocial
  55. Simão Mata - Psicólogo e Investigador na FPCEUP
  56. Sandra Vieira -psicóloga clínica
  57. Susana Fernandes – Assistente Social
  58. Teresa Sousa - Criminóloga
  59. Xímene Rêgo - Investigadora

 

 

 

 

PS - Acrescentaremos ao final de cada dia os nomes e entidades que quiserem apoiar esta carta aberta.

PS1 - O impacto e melhoria da Carta, serão depois discutidas em reunião aberta da CASO, na 6ª Feira, dia 18 de Outubro, no Porto, no espaço de Redução de Riscos e Danos cedido pelo Externato de Santa Clara, na Rua de Santo Ildefonso, porta ao lado do Nº 433, Porto, com o objectivo de encaminhar o resultado para as Instituições.